sexta-feira, novembro 26, 2021

versão raquítica de um clássico musical de 1972

"- como é que eu vim aqui parar, afinal?"

quando o cérebro decide brincar connosco, espicaçando-nos e martelando-nos a cabeça para fazer algo que sabemos muito bem que não queremos fazer, acabamos a fazer a pergunta que encima este texto.

podemos falar de curiosidade, essa cenoura que o cérebro nos coloca à frente dos olhos como se fossemos completamente inconscientes e, ainda por cima, cheios de fome. podemos chamar-lhe outra coisa qualquer, mas, no final, o cérebro ganha sempre ao corpo.

mesmo cansado, já na antecâmara de mais uma noite sem qualquer vestígio de novidade ou surpresa, despertei para a sugestão que, perfidamente, ele me sugeriu, como que a dizer "vá lá, tira lá o pijama, vai para a rua, vive um bocadinho, o mundo é a tua ostra!". matutei nessa ideia algumas dezenas de minutos, depois afastei-a completamente, para meio minuto mais tarde a voltar a considerar. afinal, o cérebro e eu vimos exactamente a mesma coisa no monitor: eu achei normal, mas ele acendeu de imediato holofotes, fez soar sirenes estridentes e atirou-me uma alternativa a mais uma noite pachorrenta, solitária e deprimente. e foi por isso que considerei a ideia e acabei por aceitá-la.

levantei-me, tirei o pijama, vesti-me de novo para o imenso frio que se fazia sentir, camisola de gola alta, casaco interior, casaco exterior, cachecol e um gorro. rua acima, em direcção ao carro, que estava gelado. por sorte, pegou à primeira e não tinha nenhum pneu furado. o destino estava traçado, porque o cérebro já me tinha fornecido todos os apontamentos: o que fazer, como fazer e quando fazer.

cheguei ao local e procurei um local apropriado para estacionar. desliguei o carro e fiquei inerte no veículo, tentando passar o mais despercebido possível. os minutos passam... observei meia dúzia de pessoas a passear os seus cães, para estes se aliviarem, outros tantos a fumar, dois ou três a deitar o lixo fora. e passam mais minutos... ao fim de meia hora, não sabia muito bem o que estava ali a fazer. tentei focar-me novamente. saí do carro, caminhei um pouco e cheguei à conclusão de que estava ainda mais frio do que quando saí de casa. nunca fumei nem tive essa vontade, mas talvez compreenda por que motivo os fumadores não se conseguem livrar do vício. talvez os aqueça em noites como estas.

voltei para o carro. sabia que estava no local certo e na posição certa para observar aquilo que o meu cérebro me compeliu a observar. a intenção dele era nobre, lá no fundo, mesmo no fundo, e foi por isso que decidi prestar-me ao papel que estava ali a representar. mas os minutos passavam e nada acontecia. em lugar do suspense e da excitação para ver aquilo que tinha ido ali ver, começava antes a instalar-se uma enorme sombra de auto-comiseração e alguma vergonha. apanhei a minha imagem no retrovisor central e não gostei do que vi. por que raio estava eu ali, àquela hora da noite? e para ver o quê? essa era a questão principal. quereria eu ver algo que me deixasse ainda mais triste? ou quereria eu observar algo que ainda mantivesse vivas as minhas esperanças? a dúvida persistiu durante as quase duas horas em que me mantive naquele sítio, ao frio, no escuro, de gorro, cachecol e máscara, à espera de algo que se iria desenrolar nuns míseros 20 segundos.

a minha solidão foi interrompida por alguém que me enfiou um panfleto por baixo da escova de limpar os vidros. depois disso, um carro estacionou atrás de mim. depois de dois minutos a fazer manobras e mais manobras, quando tinha espaço para estacionar em 3 segundos, o condutor desligou o carro. um minuto depois, não satisfeito, provavelmente, ligou novamente o carro, saiu daquele lugar e foi estacionar, mesmo sem acender as luzes, uns 20 metros mais à frente. há pessoas perfeccionistas, mas este condutor exagerou claramente.

quem era eu naquele momento? um patético cinquentão sem mais nada para fazer? um dom quixote disposto a tudo para defender a sua dama em caso de uma eventual contenda? uma espécie de guarda-costas ou anjo da guarda sempre pronto e disponível para ajudar em qualquer situação? olhava para o retrovisor e não me reconhecia. o cérebro tinha ganho aquele braço de ferro e levou-me para aquele local frio e impessoal, onde me sentia ainda mais deslocado do que habitualmente. não era a minha parte da cidade, não era a minha zona de residência, não eram os meus vizinhos a passear os cães. sujeitei-me a alguns olhares inquisidores, de algum receio até, o que compreendi. se fosse no meu bairro e visse algo do género ficaria preocupado também. mas fui aguentando...

a questão agora era "se já cheguei até aqui, agora vou até ao final". ou seja, se desistisse após uma hora e meia e fosse embora para casa, que raio de sentimento levaria comigo? frustração? impotência? falhanço? o reverso da medalha não era muito melhor, porque representava mais longos minutos à espera, ao frio, mais ansiedade e expectativa. mas decidi-me por este último.

fui até ao final, mesmo que me tivesse colocado a pergunta inicial deste texto umas dezenas de vezes. o desenrolar foi o mais satisfatório possível, naquelas condições. de certa forma, fiquei agradado com o desfecho daquela atípica noite, a minha versão, velha, miserável, patética e doente, da música "take a walk on the wild side", de lou reed.

não sei que noites me esperam no futuro, mas uma coisa é certa: vou colocar o meu cérebro de castigo por uns tempos. não preciso de noites destas. preciso de noites acolhedoras, debaixo de várias mantas quentinhas, a ver um bom filme, a beber um bom vinho alentejano e de mão dada com a pessoa amada. vivo para isso, de forma a que quando me olhar novamente no retrovisor central do meu carro veja um homem realizado, seguro de si, confiante e cheio de auto-estima, porque tem o coração bem aconchegado e que pertence a alguém que nos pertence!

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