domingo, outubro 24, 2021

frases que se colam ao cérebro

 2021 tem sido um ano bipolar, em que por cada coisa boa que me acontece, acontecem duas ou três más logo a seguir. deixando as questões pandémicas de lado, que me roubaram centenas de momentos ao lado das pessoas que mais prezo, este ano ficará sempre indelevelmente ligado ao que me sucedeu em agosto. os sinais já vinham de final de maio, início de junho, mas o auge chegou no início de agosto. e logo quando estava de férias...

de um mero mau estar a dores lancinantes no fundo das costas, que me tornaram o melhor cliente de sempre dos comprimidos spidifen, a sintomatologia foi-se estendendo, com altos e baixos, até à noite do dia 26 de agosto, altura em que tudo se agudizou, de tal forma que, no dia 27, sexta-feira, fiz aquilo que sempre procurei evitar desde maio: ir às urgências. isto porque, dado o meu historial naquela unidade, não queria de todo perder sete ou oito horas da minha vida, à espera de ser atendido. mas nesse dia até estava de folga e fui mesmo. entrei às 14h30 e fui atendido por uma médica às 20h00...

exames para trás e para a frente, tirar sangue, injecção para as dores (o normal, portanto, de tão habituado que estou) e pensei: "pronto, com a injecção, já não me doem as costas, vou ficar à espera que me dêem alta". como estava enganado...

palavra chave: creatinina. foi este valor que fez soar os alarmes quando a médica viu as minhas análises ao sangue. estavam tão fora do normal que nem estava a conseguir urinar. tentei duas vezes enquanto estive quase seis horas para ser atendido e não consegui. obviamente que achei estranho, nunca me tinha acontecido tal situação. quando fui chamado novamente à médica, o cenário não poderia ser mais aterrador, do qual fixei isto: insuficiência renal, ambos os rins bloqueados e intervenção cirúrgica de urgência. passei a noite na urgência, numa maca, com uma algália, a ser monitorizado. não preguei olho. por muita má que fosse a situação clínica, nada nos prepara devidamente para termos uma algália. foi talvez das noites mais terríveis de toda a a minha existência.

no dia seguinte, sábado, mais exames, incluindo um para o qual tive de assinar em concordância, dado os riscos que envolvia. mas foi esse exame, uma tac com contraste, que permitiu visualizar a gravidade da minha situação. uma pedra de 3mm a obstruir um rim, outra de 6mm a obstruir outro.

sou enviado para coimbra, onde, apenas uma hora depois, já estava no bloco operatório. três horas depois, acordei no recobro. pelos vistos, tudo tinha corrido bem. era agora portador de um duplo J bilateral, uma intervenção, pelos vistos, normal neste tipo de casos clínicos.

entrei na enfermaria, cama 17, do serviço de urologia do CHUC, ainda no sábado e por lá fiquei até ao dia 1 de setembro. pelo meio, fiz anos no dia 30 de agosto. tinha dois colegas de quarto, ambos da zona de arganil. a frase de um deles, de cerca de 60 anos, quando soube que eu fazia anos nesse dia, nunca me saiu da cabeça até hoje, e duvido que venha a sair tão cedo:

- "faz anos hoje? a melhor prenda que poderá receber é os seus rins voltarem a ficar bons!".

passaram quase dois meses. estou a ser devidamente seguido no hospital de viseu. continuo com o duplo J bilateral, tomo medicação específica para destruir as pedras que ainda tenho no meu interior e tenho nova consulta marcada para janeiro. não sei o que o futuro me reserva em termos de saúde, mas aquela frase ecoa na minha cabeça várias vezes ao dia. porque o homem devia saber perfeitamente o que estava a dizer...

um eterno lugar à mesa


outono. tempo de castanhas. como hoje as primeiras como deve ser, depois da tentativa de o fazer ontem em casa da minha mãe. vieram para a mesa 15 minutos antes do que deveriam e, como tal, não se conseguiam descascar. foi o único senão de um almoço principesco, um arroz de costelas (entrecosto) a correr, simplesmente divinal! o arroz sempre foi a especialidade dela, mas ultimamente tem refinado essa inclinação, confeccionando pratos como o citado, ou ainda arroz de marisco ou o sempre apreciado arroz de feijão. as castanhas... são outra história.

nas últimas vezes que a visitamos, sempre acompanhado pelos meus filhos, reparamos que a mesa está colocada para cinco pessoas. já era assim em setembro. habituados a respeitar os mesmos lugares à mesa durante anos, aquele lugar, imediatamente à minha direita, estava sempre colocado, mesmo quando o meu pai estava no hospital. em outubro, após a sua partida, o lugar continua a ser colocado na mesma. e ele bem teria gostado do almoço de ontem...

há várias semanas nos cuidados paliativos, sem que a ciência pudesse interceder pelo seu destino, partilhávamos todos, aquelas quatro pessoas à mesa, a mesma amargura. faltava ali alguém. e a pessoa que ali faltava não tardaria a sair das nossas vidas para sempre. a mesma pessoa a quem eu dediquei, no dia do pai, em 2007, este texto: 

https://nuvensdaalma.blogspot.com/2007/03/pai.html 

 

naquele mês de setembro, foram vários os sinais de alarme, em que nos apressamos a conduzir até ao hospital, sempre a pensar que tinha chegado o momento. ficávamos um pouco com ele e saímos de lá mais sossegados, convictos de que ele iria aguentar, pelo menos até aquele dia, 17 de outubro, em que os meus pais assinalariam 50 anos de casados.

a última vez que o vi, com vida, foi no dia 1 de outubro. fui com o meu filho pedro vê-lo ao hospital. pareceu-me bem, estava sem máscara de oxigénio, conseguimos falar com ele, perguntou ao meu filho quando é que ele casava. enchi-lhe a garrafa de água que estava vazia, depois de ter pedido uma de litro e meio à auxiliar. no final, disse algo como "não se prendam por mim, vão lá à vossa vida". e nós fomos. mas, três dias depois, ele foi à dele. e não, desta vez não chegámos ao hospital a tempo. soube por telefone, no IP3, a três quilómetros do hospital, que ele tinha partido...

por muito que estejamos preparados e mentalizados para a inevitabilidade da partida de um ente querido, nada nos prepara para ver esse ente querido sem vida. quando entrei no quarto, em cima da cama já não estava o meu pai, estava um corpo inerte, vazio, sem alma. sei bem que nunca irei esquecer a primeira imagem que se me deparou quando entrei no seu quarto, cama 10. já sabia que ele tinha partido e que não haveria mais nada a fazer, a não ser entregar-me à resignação absoluta. mas aquele choque de o ver sem vida, a forma como o deixaram em cima da cama, como toda a parafernália de máquinas e máscaras de oxigénio já tinha sido retirada, em tempo recorde, certamente, e restavam apenas os bens pessoais e o seu saco de roupa, foi uma agressão demasiado dura para encaixar. não tinha tido coragem de ver os meus avós sem vida quando eles partiram. tive-a agora. mas sei que vou ter aquela imagem bem gravada na minha cabeça até eu próprio partir.

os almoços em casa da minha mãe são, agora, diferentes. a minha mãe não é a mesma, nós não somos os mesmos. mas vamos procurando fazer a minha mãe rir, abrir aquele sorriso que tão bem a caracteriza. é uma mulher dilacerada pela dor, porque o seu amor de mais de 50 anos já não está ali connosco à mesa. já não está entre nós...

a vida continuará, certamente. alguém inventou as despedidas para momentos como estes. e eu tive a oportunidade de me despedir do meu pai, de lhe dizer o que sempre senti por ser seu filho, de lhe agradecer tudo o que ele fez por mim. foi sempre nele que confiei quando precisei de alguma coisa, foi o meu rochedo, a minha garantia de que, acontecesse o que acontecesse, estaria sempre bem, porque ele estaria lá para me ajudar. e esteve. esteve sempre! até morrer...