segunda-feira, novembro 30, 2020

À espera de um Natal sem data


 Lembro-me bem daqueles natais com mesa farta, o cheiro a rabanadas e a filhós, o bulício na cozinha à volta do bacalhau, das batatas e das couves. De colocar os pratos na mesa para acomodar uma dezena de pessoas, de nunca haver espaço suficiente para colocar tudo aquilo que se confeccionou na hora, mais os queijos, o bolo-rei, o presunto e toda uma série de entradas. De tentar acondicionar os presentes debaixo da árvore de Natal, de avivar a lareira quando ela teimava desmaiar, de preparar o vinho tinto alentejano que se iria consumir na ceia, mais as bebidas para os mais novos, de tentar controlar o seu natural entusiasmo perante a perspectiva da abertura das prendas. Não me esqueço dos constantes “e agora, pai, já podemos abrir as prendas?” de meia em meia hora…

O Natal dos adultos era diferente, as prendas eram o que menos interessava, o mais importante era colocar a conversa em dia durante a ceia, comer e beber bem, não deixar faltar nada na mesa, ir substituindo as garrafas de vinho, as travessas com fritas, os frutos secos, as sobremesas e o bolo-rei (que, curiosamente, nunca tinha saída nessa noite, era mesmo o único elemento gastronómico que ficava por encetar).

Era um Natal de sorrisos rasgados, de ansiedade pelo que se ia comer e beber em ambiente festivo, pela alegria que iríamos proporcionar às crianças do nosso núcleo familiar com os presentes, recebendo em troca os mais cintilantes brilhos nos olhos, genuínos sorrisos de alegria, apertados abraços e sentidos beijos de agradecimento. O Natal também era isto, dar uma enorme alegria às crianças, mesmo que três dias depois os brinquedos que lhes demos estivessem já a um canto, avariados ou partidos.

Era inevitável chegar à conclusão de que, até ao nível das prendas de Natal, se tinha registado uma grande evolução em termos geracionais. Os meus pais nunca tiveram direito a elas, dadas as dificuldades com que se debateriam os meus avós. A geração seguinte, a minha, também se debateu com muitas dificuldades financeiras, mas os meus pais nunca deixaram passar esta época sem uma lembrança, por mais insignificante que fosse. E nós, como filhos, também sabíamos que não podíamos almejar muito alto. Na minha altura, não passavam nem 10% dos anúncios a brinquedos que hoje inundam os canais de televisão. Lembro-me dos carrinhos da Majorette e da Matchbox, das garagens com andares de estacionamento de carrinhos, com elevador, do cubo mágico, dos walkman e, mais tarde do Spectrum (o saudoso Spectrum…).

Mais recentemente, a geração dos meus filhos teve aquilo que nós, quando éramos da idade deles, queríamos ter, numa plêiade infindável de brinquedos, gadgets tecnológicos e acessórios. Em suma, tentamos sempre fazer mais do que os nossos pais fizeram, ou puderam fazer. Obviamente, também espero que o mesmo aconteça com os meus netos, quando chegar a altura de os meus filhos se debaterem com a lista de "exigências" no Natal. Seria bom sinal...

Lembro-me da azáfama dos dias anteriores à consoada, a lista de compras, as filas nas lojas e hipermercados, o trânsito, aquela prenda de última hora, do brandy para o cunhado… Mas, quando o relógio chegava às 20h00 do dia 24 de Dezembro era inevitável: olhava para a rua e não via ninguém. Depois do rebuliço dos dias anteriores, imperava o silêncio a essa hora, com as pessoas já em suas casas a celebrar o Natal em família. De repente, tudo fazia sentido, porque sabíamos que tinham valido a pena os minutos perdidos naquela fila interminável para embrulhar as prendas, ou os 20 minutos à procura de estacionamento para se ir a um centro comercial apinhado comprar aquela última prenda. Quando fechava as cortinas e me virava para a sala, onde já estavam os familiares mais próximos, a mesa enfeitada com muito empenho e afinco para que nada faltasse, os miúdos ansiosos por abrir as prendas, e onde havia sorrisos estampados nos rostos de toda a gente, acontecia... Natal! E esse era um sentimento interior tão forte, tão umbilicalmente ligado aos laços familiares, que em vez de estarmos a festejar um nascimento, estávamos nós próprios a nascer de novo, tal como acontece todos os anos na noite de 24 de Dezembro!

São memórias coleccionadas ao longo dos anos, em muitos natais, dos mais singelos aos mais faustosos. Mas, neste malfadado ano de 2020, creio que a única prenda que vamos receber no Natal é precisamente essa: a memória dos natais de outrora. Não sou contra as medidas restritivas em virtude da pandemia, antes pelo contrário. Sou a favor do recolher obrigatório e da proibição de circulação entre concelhos. Acredito que, à imagem da primeira vaga, apenas iremos inverter a evolução dos números com este tipo de medidas. Considero inacreditável ainda haver negacionistas nesta matéria quando todos verificamos o que sucedeu na primeira vaga e a forma como o país reagiu. Foram meses penosos, de muitos sacrifícios, mas conseguimos. Foram vários meses afastados da família mais directa, a evitar os almoços de domingo, a visita ao fim-de-semana para lhes aquecer o coração, a comemoração de aniversários, épocas festivas, etc.. Foi duro, mas havia um fundamento: não colocar em risco aqueles que mais amamos e consideramos.

A segunda vaga, que todos sabíamos que chegaria eventualmente, tem essa particularidade de abranger o período natalício. Os números sobem vertiginosamente desde o final de Outubro e, apesar de uma ligeira melhoria, vão entrar em Dezembro ainda bastante altos, superiores aos registados em toda a primeira vaga. O Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças já anunciou que as medidas em Portugal devem ser mantidas até ao final do ano. Os países que mais cedo encetaram medidas idênticas estão agora a colher os frutos dessa decisão. Em Inglaterra, as infecções caíram 30% após o confinamento de Novembro, mas, mesmo assim, Boris Johnson anunciou que as novas medidas restritivas só terminarão a 3 de Fevereiro do próximo ano. Espanha, Itália e França têm agora números mais baixos que Portugal, porque também eles “acordaram” mais cedo para o problema. Portugal está, agora, numa corrida contra o tempo e António Costa já referiu que os portugueses terão de se preparar para festejar o Natal de uma forma diferente, sob a égide de um estado de emergência.

Todos sabemos da importância do Natal para a economia nacional, todos adoramos a época natalícia, conviver com os nossos familiares em comunhão espiritual e fraternal, proporcionar sorrisos rasgados aos nossos filhos, sobrinhos, afilhados, mas será importante estabelecer prioridades e não nos esquecermos do que realmente está em causa. Nesta altura, não estamos a fazer sacrifícios, ou mais sacrifícios ainda, para salvar o Natal. Estamos a fazê-lo para salvar vidas humanas, incluindo as daqueles que mais amamos.

Será mais uma prova de resiliência e determinação, sobretudo numa época que convida ao reencontro familiar e ao estreitamento de laços sentimentais, mas é necessários sermos racionais em vez de sentimentais, pelo menos durante mais alguns meses. Estará iminente a vacinação e, se o processo correr conforme o esperado, daqui a algum tempo já poderemos colocar tudo isto para trás e voltar à normalidade. E então sim, voltaremos a colocar dezenas de lugares à mesa para um grande almoço de reencontro, seja em que data for, com dezenas de parabéns para cantar, folares da Páscoa e prendas de Natal. Acredito e anseio pela realização desse almoço, porque sei que vamos voltar a estar juntos, demore o que demorar.

sábado, novembro 21, 2020

Os estigmas do poder local

 

 

 (artigo publicado no dia 19 de novembro de 2020)

Se é verdade que estamos em guerra, contra um inimigo invisível mas terrivelmente mortífero, devemos analisar as decisões dos denominados líderes que nos representam e a forma como eles se adaptam e reinventam perante as dificuldades. Há vários factores a ter em conta: a forma como comunicam e tentam levantar a moral de um povo assustado, a maneira como empreendem planos de acção contra as adversidades e o seu tempo de reacção perante uma dificuldade pontual.

No dia 12 de Novembro, ficamos a saber que Viseu entrou para o lote dos concelhos com medidas restritivas, daí advindo que durante os próximos dois fins-de-semana, pelo menos, haja recolher obrigatório a partir das 13h00 de sábado e domingo. Como seria de esperar, o sector da restauração insurgiu-se rapidamente contra esta decisão do governo, antecipando avultados prejuízos. O governo respondeu com um pacote de medidas de apoio para o sector, pacote esse que o autarca de Viseu, no dia 13 de Novembro, rapidamente criticou, por considerar manifestamente insuficiente.

Segundo Almeida Henriques, “terá de ser o governo a dialogar com a restauração, que será dos mais afectados com a limitação, sobretudo ao fim-de-semana, e a dialogar com a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal para chegar a um acordo para se encontrar o apoio certo. Se não for 20%, que seja 30% ou 40%, tem de ser aquilo que seja a percentagem adequada que compense o sector. O governo tem de cumprir com o seu papel de contribuir para que menos empresas fechem”.

Do dia 13 de Novembro até hoje, passaram-se seis dias. Compreendendo a preocupação do autarca viseense, que se colocou logo ao lado do sector da restauração, podemos questionar, pegando naqueles critérios todos do primeiro parágrafo, o que é que de palpável ele fez para minorar os prejuízos da restauração no seu território. Basta passar pela página do município de Viseu no Facebook, rever as publicações da última semana e tirar ilações. A tal “dificuldade pontual” apareceu mesmo e os nossos governantes locais tiveram uma semana para empreender planos de acção para a combater e tentar minorar o prejuízo da restauração. Portanto, em termos de tempo de reacção, estamos conversados. Se o governo ofereceu pouco, no entender do autarca local, a sua câmara ofereceu ainda menos. Chutou-se a responsabilidade para o poder central e voltou-se a cruzar os braços, como se o poder local fosse um comando de televisão sem pilhas.

Se quisermos traçar termos de comparação com o que se vai passando no resto do país, até podemos começar com um concelho aqui bem perto de Viseu. A Câmara Municipal de Nelas deliberou, face aos condicionalismos provocados pela pandemia no próximo fim-de-semana, proceder à entrega de refeições take-away dos restaurantes do concelho, através da rede de táxi da vila. A autarquia assume os custos inerente à entrega da refeição, criando uma forma de apoio sector da restauração, um dos mais afectados pelo surto pandémico de covid-19. O serviço é garantido no almoço de sábado e domingo, a partir das 13h00, e ao jantar desses mesmos dias, até às 22h30.

Além desta medida, este município vizinho, na última semana, instalou tendas nas entradas dos Centros de Saúde de Nelas e Canas de Senhorim, para protecção dos utentes, entregou 360 secretárias individuais para os alunos dos agrupamentos de escolas, chegou a um total de 372 cabazes de fruta e produtos hortícolas às famílias mais carenciadas do concelho e negociou com as unidades de saúde familiar locais o alargamento do horário de funcionamento.

Isto foi tudo no mesmo espaço de tempo, ou seja, de 13 de Novembro até hoje. É precisamente quando o cenário começa a ficar bem negro que precisamos dos líderes, das suas tomadas de decisão, determinação, coragem, arrojo e destreza. Para termos mais uma pessoa a criticar as medidas do governo, basta ligarmos a televisão…

Ainda em assuntos relacionados com a pandemia, e fazendo uma ronda pelos restantes concelhos do distrito de Viseu, reparamos que a maior parte deles, na sua página oficial na rede social Facebook, faz um relatório DIÁRIO da situação epidemiológica dos seus territórios, mantendo informados os seus munícipes sobre a dimensão real da pandemia a nível local.

Verificamos que, no mesmo espaço de uma semana, o município de Sernancelhe, em colaboração com as juntas de freguesia do concelho, está AINDA a distribuir máscaras de protecção individual à população local; Mangualde instalou duas tendas nos acessos às unidades de saúde familiar de Mangualde e Terras de Azurara para melhor comodidade dos utentes durante o período de espera e de acesso aos serviços; Cinfães está a comparticipar a administração da vacina da gripe aos cidadãos com 65 ou mais anos de idade e aos grupos de risco; e Tondela anunciou apoios para o pagamento de rendas mensais de estabelecimentos comerciais, serviços e retalho.

Se alargamos o âmbito à escala nacional, e ainda em relação aos apoios específicos para o sector da restauração, vemos Matosinhos a criar um serviço de entrega de refeições ao domicílio, sem custos para o consumidor, para vigorar nos fins-de-semana de recolher obrigatório, Vila Real a abdicar da festa de passagem de ano e a direcionar essa verba para o comércio e restauração, bem como a proceder à distribuição de mil recipientes de alumínio a cada um dos cerca de 50 restaurantes do concelho para serem usados no serviço de ‘take-away’, e Paredes a disponibilizar os serviços de take-away e entregas ao domicílio em aplicação móvel.

Sim, tudo isto se materializou durante a mesma semana, de 13 de Novembro até hoje.

Podemos questionar se a autarquia de Viseu não tem tantos meios à sua disposição como as câmaras de Nelas, Matosinhos, Paredes ou Vila Real. Ou se os autarcas destas localidades estão a favor ou contra o pacote de apoios do governo à restauração. A verdade é que, estando a favor ou contra, colocaram as mãos na massa e tiraram o máximo daqueles dois verbos do primeiro parágrafo, “adaptar” e “reinventar”. Por cá, ainda se continua a conjugar o verbo “ressabiar”… E se não fosse a proliferação de máscaras na rua, ainda se poderia pensar que a pandemia nunca tinha cá chegado.

Em tempo de guerra, as decisões terão necessariamente de ser rápidas, no sentido de ajudar quem mais necessita e não protelar o seu sofrimento. Para a autarquia de Viseu, que apregoa a sua saúde financeira aos quatro ventos, uma semana não bastou para se pensar numa forma de ajudar os proprietários de restaurantes a atenuar os seus prejuízos. Nem um rasgo da equipa que concebeu e executou de forma magistral (segundo eles) o Cubo Mágico, o epítome da criatividade. Enfim, bastava irem à janela, olharem em frente e verem… a praça de táxis.

sábado, novembro 14, 2020

Continuamos todos convocados!

 


(artigo publicado no dia 11 de novembro de 2020)

 

Se formos questionados daqui a cinco ou dez anos, assumindo que lá chegaremos, claro, sobre o que nos roubou a pandemia, certamente que todos saberemos elencar diversos infortúnios. Desde logo, a perda de familiares, amigos ou conhecidos, mas também situações mais mundanas, como o emprego, aniversários, efemérides, hábitos, entre outros. Ao invés de construirmos memórias alicerçadas na empatia e convívio entre semelhantes ou na solenidade de um evento familiar, vivemos em distância social, com receio uns dos outros, com medo, inclusivamente, de procurar cuidados médicos para os problemas de que padecíamos antes deste vírus. De repente, vimo-nos confrontados com o peso da nossa vulnerabilidade, que reduz a linha que separa a vida da morte a um fio de cabelo.

Acima de tudo, este vírus tem vindo a delapidar-nos sentimentalmente, a privar-nos dos contactos com os laços emocionais que tecemos, aqueles que construímos durante anos e que tudo fizemos para manter. Impede-nos de ir visitar entes queridos ao hospital, às suas casas ou aos lares, quando esse momento é aquele por que essas pessoas mais anseiam durante dias e dias. Chega até a expropriar-nos de uma despedida solene e merecida a todos os que partiram durante a pandemia.

A pandemia engavetou-nos os afectos, afasta-nos sistematicamente uns dos outros, impedindo beijos, abraços, apertos de mão, ou seja, as manifestações de apreço, carinho e consideração que os nossos pais e avós nos ensinaram e que passam de geração para geração. Desde tenra idade que somos impelidos pelos nossos pais a cumprimentar os seus conhecidos, constituindo esse passo a nossa entrada numa vida em sociedade, fora do ambiente familiar. A vergonha de outrora, com o rubor bem evidenciado na face, é substituída por um seco acenar de mão a dois metros de distância, porque todos os cuidados são poucos, a alguém de máscara que as crianças não reconhecerão no dia seguinte.

De um momento para o outro, a vida deu uma volta de 180 graus e ficou tudo ao contrário. O que antes era considerado arrogância ou antipatia, agora é enaltecido e incentivado, por ser mais seguro para todos. A inadequação social que antes era criticada, agora até dá jeito. Antes, éramos considerados “bichos do mato” por nunca querermos sair de casa para confraternizar com amigos; agora, somos elogiados pelo bom exemplo que estamos a dar. Inverteu-se o paradigma social e, por estes dias, até um eremita corre o risco de vir a ser considerado um influencer…

No primeiro período de quarentena, tentamos fazer tudo certo, respeitar todas as normas para que os números não subissem de forma exponencial no concelho onde vivemos. Os filhos fizeram anos? Não os vimos sequer, nem nesse dia, nem durante dois meses. Veio a Páscoa e a família não se reuniu como em todos os anos anteriores. Os pais, ambos doentes, estiveram a viver um para o outro, 24 sobre 24 horas, sem verem os filhos e os netos? Só os pudemos visitar e ajudar em meados de Maio, debaixo de mil cuidados. Fizeram-se muitos sacrifícios, colocamos a nossa vida em pausa, a distância calou fundo em todos os corações imersos em saudade, engolindo em seco as palavras que poderiam nunca mais ser ditas frente a frente às pessoas que as mereciam ouvir. Foi duro, muito duro mesmo, mas prevalecemos! A ressonância emocional foi dilacerante, mas fomos capazes, como comunidade, de conter o que nos outros países europeus corria desenfreado.

Agora, neste malfadado Outono, os números voltam a bater-nos à porta. Com maior incidência no norte do país, o vírus provoca o aumento de infectados, internados e falecidos, de dia para dia, sem dar tréguas. No distrito de Viseu, sete concelhos integram o primeiro lote de 121 concelhos com regras mais restritivas: Cinfães, Tondela, Oliveira de Frades, Moimenta da Beira, São João da Pesqueira, Tabuaço e Santa Comba Dão. Mas estão à porta do segundo lote, que será estabelecido amanhã, os concelhos de Castro Daire, São Pedro do Sul, Nelas, Mangualde e Resende. Por enquanto, os concelhos de Armamar, Carregal do Sal e Vouzela são os mais seguros.

Conseguiremos, desta vez, achatar esta curva ascendente? Os valores são mais agrestes, muito mais, mas aquilo que temos de fazer é exactamente o mesmo que fizemos antes. Sim, até temos essa vantagem da experiência recente. Temos de ter os mesmos cuidados, respeitar as mesmas distâncias, higienizar várias vezes as mãos, usar máscara, evitar ajuntamentos sociais e seguir as recomendações do governo e da DGS. Creio que não haverá ninguém neste país que não tenha ouvido ainda estas recomendações.

Esta não é uma boa altura para se ser rebelde. Esta não é a conjuntura ideal para apregoar à insubordinação e à insurreição. É uma altura para deixarmos de olhar apenas para nós e olharmos à nossa volta, de projectar o olhar e alargar a nossa esfera movida pelos bens materiais, pela rotina confortável, por tiques e automatismos fúteis que pairam como pura abstracção e pensar um pouco no que nos rodeia, porque o nosso ego não pode representar os limites do nosso mundo. E esse mundo, o de todos nós, está a precisar da nossa ajuda para enfrentar uma pandemia a uma escala global. Estamos todos convocados para esse embate com a realidade. E o que podemos fazer está perfeitamente ao nosso alcance.

Entretanto, os números de hoje, 11 de Novembro:

Casos Confirmados: +4935; Número de Internados: +43;

Número de Internados em UCI: +9; Óbitos: +82; Recuperados: +3475

Com o que tem acontecido nas últimas semanas, ainda haverá alguém que continue a insistir na teoria da “gripezinha” do Bolsonaro? Vejam as notícias, as crescentes dificuldades nos hospitais do norte do país, prestes a ficar sem camas, sendo obrigados a enviar infectados para outros concelhos, a falta de profissionais de saúde para responder a tantas solicitações, o pedido de ajuda veiculado diariamente por médicos, enfermeiros, autarcas e instituições. Aqueles que insistem em relativizar e a reduzir o que estamos a viver desde Março a uma histeria colectiva sem fundamento terão noção de que poderemos estar na antecâmara de uma ruptura do nosso Serviço Nacional de Saúde? O que será necessário para todos nos consciencializarmos, de uma vez por todas, da gravidade desta conjuntura?

Olhem para os números novamente, onde se registam 82 mortes diárias, o maior número de sempre em Portugal desde o início da pandemia! Olhem, mas não pensem apenas em números, porque são pessoas que ali estão. São pessoas que têm familiares, amigos, conhecidos como todos nós temos. São pessoas que têm alguém, muitos alguéns, a sofrer por elas, não podendo estar ao seu lado, nem apoiar a sua convalescença. Imaginem essas pessoas e tentem colocar-se no lugar delas por um momento, internadas num hospital, entubadas e ventiladas, a lutar pela vida e a ansiar que o próximo fôlego seja uma realidade e não apenas um desejo.

A previsível birra no mais ansiado adeus

 

(artigo de opinião publicado no dia 6 de novembro de 2020)

No momento em que escrevo, Joe Biden está muito próximo de se tornar no 46º presidente dos Estados Unidos da América. Tem 253 votos eleitorais, contra 213 de Trump, e está próximo de atingir os 270 que bastarão para ser eleito. Nesta altura, estão muito perto de ser contabilizados os votos totais nos estados da Geórgia (16 votos eleitorais), Nevada (6), Pensilvânia (20) e Arizona (11). Ou seja, basta vencer na Pensilvânia (e está bem encaminhado para isso), mas Biden segue à frente nos quatro estados referidos.

Já ninguém duvidará que Joe Biden ganhou as eleições, embora o democrata tenha sempre recomendado calma nas suas intervenções pós-eleições, mantendo um registo ponderado e cauteloso. Numa postura diametralmente oposta está Donald Trump, que poucas horas depois de terem encerrado as urnas declarava vitória. Isto já seria grave, estando milhões e milhões de votos por contabilizar, mas o homem ainda foi mais longe: exigiu que se parasse a contagem de votos, alegando fraude eleitoral em virtude dos votos enviados por correio. Ou seja, Trump a ser Trump, no auge da sua prepotência, a declarar vitória antes que mais alguém o fizesse, naquela sua máxima, utilizada até à exaustão, de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade.

O ainda presidente americano está, agora, cada vez mais sozinho no seu registo quixotesco, acompanhado apenas pela sua família e por outro elemento ainda mais ridículo e cabotino do que ele, Rudolph Giuliani, como bem o provou a sequela de Borat. Os seus argumentos? “Isto é tudo ilegal, os votos não deveriam contar, é tudo uma fraude eleitoral e estão a roubar-nos a vitória”. Algo como isto. Provas, factos, documentação? Nada. Acusar de fraude eleitoral as eleições presidenciais na maior democracia do mundo é simplesmente vergonhoso para o país. E quem é o presidente desse país? Exactamente a mesma pessoa que faz a acusação. Onde está a honestidade que tanto apregoa, quando quer que se contem apenas os votos que lhe dão a vitória nas eleições?

Trump e o seu séquito estranham muito que Biden lidere, com larga vantagem, nos votos por correio, mas esquecem-se que o democrata insistiu nos últimos meses nessa forma de voto, instando os eleitores a votarem dessa forma, por ser mais prático e até mais seguro em virtude da pandemia. Trump renegou completamente esta modalidade, classificando-a de perigosa e que levaria a potencial fraude, preferindo comícios repletos de gente sem máscara, passeios de SUV à porta do hospital quando estava infetado com covid-19, proferir arrogantes e narcisistas frases sobre o seu notável desempenho como presidente e até, pasme-se, os seus atributos físicos, dançar ao som da música “YMCA” e repetir ad nauseam a frase “a vacina está quase pronta”. Está quase pronta desde Maio…

O próprio partido republicano começa já afastar-se de Trump e das suas declarações. O antigo senador republicano Rick Santorum, que ficou atrás de Mitt Romney na corrida à Casa Branca em 2012, manifestou-se “desapontado e chocado” ao ouvir as infundadas alegações de Trump, desejando que o partido republicano defenda a legitimidade das eleições. Do mesmo modo, o advogado Benjamin Ginsberg, representante do partido republicano em várias eleições presidenciais, expressou a sua estupefação perante os ataques “infundados e sem sustentação legal” de Trump, referindo que, desta forma, ele está a chamar incompetentes e desleais a todos os republicanos que estão a prestar serviço na contagem de votos. Acrescentou, hoje, na CNN, que não existem casos credíveis de fraude para Trump levar aos tribunais.

Também a comunicação social está farta, e já não é apenas a revista Time. Em resposta a mais um bombardeamento conspirativo em termos de declarações oficiais do ainda presidente na noite de ontem, vários canais de televisão, como os gigantes ABC, CBS e NBC, cortaram a emissão em directo da Casa Branca, alegando existirem “apenas palavras, não há verdade nenhuma e não vamos permitir que continue porque não é verdade o que ele diz”. A falta de justificação e de provas para o constante discurso carregado de alegações de manipulação do escrutínio e da existência de “votos falsos” levou a esta decisão.

Daniel Dale, repórter da CNN destacado para a Casa Branca, que desde 2016 escreve artigos intitulados “Fact check” sobre as declarações de Donald Trump, considerou que o ainda presidente americano proferiu ontem à noite o seu discurso mais desonesto de sempre. Entre outras declarações, Trump queixou-se que lhe estavam a roubar a reeleição, disse que os votos por correio são um sistema corrupto, referindo que venceria as eleições com os votos ditos “legais”, e ainda montou toda uma teoria de conspiração a favor dos democratas, diabolizando o partido de Biden. Ou seja, tudo foi válido para justificar a mais do que provável derrota.

Como prova cabal do seu impregnado mau perder, atente-se neste episódio de hoje, quando Trump começou a ver que ia perder o estado da Pensilvânia, nomeadamente pelo número de votos de Biden em Filadélfia, a maior cidade do estado. No Twitter, escreveu que “a Filadélfia tem um péssimo histórico de integridade eleitoral”. Vai estrebuchar, fechar-se na sala oval, fazer mais uma dezena de birras, mas terá mesmo de sair, depois de ter andado quatro anos a preparar os próximos quatro.

Os americanos e o mundo vão livrar-se, finalmente, do líder supremo da arrogância e da prepotência. Ganhou na América profunda, menos bem informada e mais inculta, a mesma que lhe granjeou a presidência há quatro anos, quando Hillary Clinton não provou ser a candidata que mais unia o partido democrata. Quatro anos de atropelos, asneiras, mentiras, de presidência pelo Twitter, fuga ao fisco, afirmações racistas, incitação à violência, desconsiderações ao resto do mundo, ao Acordo de Paris, à Organização Mundial de Saúde, culminando no inenarrável episódio da infecção por covid-19, teriam de merecer este resultado. E perdeu, segundo Trump, para “o pior candidato a presidente de sempre da história do país”, como o definiu no primeiro debate eleitoral. No entanto, Biden é o candidato que até hoje teve mais votos na história das eleições americanas, o único a passar a barreira dos 70 milhões.

O mundo livrou-se de um homem muito perigoso. Certamente que uma qualquer estação televisiva já o tem em mira para um novo reality show, onde o senhor pode voltar a mandar à sua vontade e dizer as barbaridades que lhe apetecer.

“You’re fired!”.