quinta-feira, dezembro 31, 2020

Que 2021 seja o primeiro ano do resto das nossas vidas


É muito frequente, por esta altura, mesmo para os mais pessimistas, pensar que a chegada do novo ano representa novas oportunidades, um recomeço, uma partida fresquinha para uma corrida com 365 etapas. Em certa medida, é como entrar para um duche rápido no dia 31 de Dezembro, pelas 23h58, e sair de lá, devidamente revigorado, às 00h02 do dia 1 de Janeiro. Os mais ousados, trocam o duche pelo mar e mergulham à meia-noite em ponto. É uma opção como qualquer outra, como vestir cuecas azuis, ingerir doze passas, subir a um banco ou contar até 78 em húngaro enquanto se desossa uma galinha cozida com os olhos vendados.

Vamos entrar num novo ano, 2021, e este tem um condão especial: nunca ninguém ansiou tanto, à escala mundial, por um novo ano! Ou por um ano diferente, pelo menos. 2020 foi penoso e cruel, arrastou-se vagarosamente, como aquelas pessoas que estão à nossa frente na fila para o multibanco e têm 15 contas para pagar. Ou seja, se antes, mesmo no final de anos normais, como 1989, 1999 ou 2005, ansiávamos por um novo ano, o que dizer no final de 2020? Creio que estaremos todos ansiosos e a desejar que 2021 seja, efectivamente, o primeiro ano do resto das nossas vidas. Que seja o ano em que poderemos resgatar todas as liberdades que perdemos em 2020, aquelas que tomávamos como garantidas e que estaríamos longe de imaginar que alguma vez perderíamos.

Falta um dia para acabar o ano em que tivemos de nos afastar das pessoas que mais amamos, precisamente para lhes provar que as amamos. Deixámos de abraçar e beijar os nossos pais, os nossos filhos, de cumprimentar as pessoas na rua, de dar afectos a quem mais precisava deles. O ano em que passámos a usar a máscara como protecção e deixámos de reconhecer as pessoas, que nos obrigou a andar repetidamente a encher as mãos com gel desinfectante, a esperar em filas na rua para sermos atendidos, a provar que não tínhamos febre para podermos fazer uma refeição num restaurante ou a respeitar o recolher obrigatório e a proibição de circulação entre concelhos.

Nem astrologia, numerologia, tarot, orixás, videntes ou a leitura dos búzios nos preparou para tudo isto. Antes pelo contrário, todos estes farsantes, perdão, pantomineiros, perdão, praticantes (sim, era isto que eu queria dizer), disseram que 2020 ia ser um ano fantástico, cheio de realizações profissionais e conquistas pessoais, simplesmente porque Saturno estava alinhado com Júpiter e Mercúrio andava enrolado com Vénus.

Apesar de tudo isto, aqui estávamos para assistir, no ocaso do ano, à chegada das primeiras vacinas contra a covid-19. Em Portugal, ainda antes do início do almejado 2021, já foram vacinados milhares de profissionais de saúde. Mudou-se o paradigma na leitura dos números: antes queríamos números baixos em termos de mortes, infectados e internamentos; agora queremos números altos, bem altos, em relação ao processo de vacinação. Pese embora o número de fatalidades que ainda vamos registando, que obviamente se lamentam, creio que vamos terminar 2020 num registo optimista e esperançoso. Sobretudo se nos lembrarmos que em plena primeira vaga pandémica, Março, Abril e Maio, se alvitrava que as primeiras vacinas contra a covid-19 só estariam prontas em meados ou finais de 2021.

O processo de vacinação ainda está a dar os primeiros passos, é certo, mas representa um enorme balão de oxigénio para entrarmos em 2021 confiantes. Depois de festejarmos a chegada do novo ano em casa, os primeiros dias serão de confinamento, a partir das 13h00. Portanto, nem vamos sentir que houve mudança de ano, mas ficaremos com a sensação de ter empurrado 2020 para fora das nossas vidas e isso já é uma grande vitória. Não tarda, chega a Primavera, o calor, a terceira fase de vacinação e talvez possamos começar a fazer projectos para o futuro novamente. Creio que merecemos, todos nós, que tudo corra pelo melhor nos próximos meses, para que ainda possamos ter um pouco de 2019 no nosso 2021.

Quando sair do tal duche rápido simbólico, vou dispensar a abertura da garrafa de champanhe à meia-noite em ponto, uma tradição que repeti durante décadas, as passas e a entrada com o pé direito, mas não vou esquecer as resoluções. A par daquelas que visarão essencialmente o futuro, como a oficialização da minha ligação sentimental e a recuperação da minha situação profissional pré-covid, vou olhar igualmente para o passado. Não esqueço que a pandemia me roubou o convívio com os meus filhos no seu dia de aniversário, tendo sido a primeira vez que tal aconteceu, porque não vivemos na mesma casa. O mesmo sucedeu com os meus pais, irmã, cunhado e restante família, mais a Páscoa e o Natal. Vários momentos familiares instituídos há anos que se evaporaram em 2020.

A minha resolução tem uma ínfima semelhança com o final do fabuloso filme “Cinema Paraíso”, em que Salvatore, já adulto, tem a possibilidade de ver uma compilação, preparada pelo projeccionista Alfredo, de todas as cenas cortadas pela censura, cena emoldurada pela magistral composição de Ennio Morricone. Quando tivermos a certeza de que o poderemos fazer, com toda a segurança e tranquilidade, vamos poder libertar, em família, os beijos, os abraços e os afectos que o covid-19 nos impediu de dar em 2020. Assim 2021 nos permita esse desiderato, porque tornamo-nos pessoas mais carrancudas e pesadas quando não conseguimos exprimir o que sentimos pelas pessoas que nos rodeiam. E por falar em pesadas… lembrei-me agora de outra resolução…

quinta-feira, dezembro 24, 2020

uma playlist num natal totalmente diferente

o que acontece quando temos tempo, espaço, computador, colunas e uma pasta com cerca de duas mil músicas? isso mesmo: uma playlist.

jantar despachado, louça lavada, mantinha nas pernas, garrafa de piteira premium à frente (alentejano, claro) e dois ou três ferreros rocher. com tudo isto, é só deixar sair o melómano que há dentro de mim. e, confesso, já estava com saudades de fazer playlists.

o que saiu em termos de músicas foi isto, de forma completamente aleatória, sim, mas todas elas apaixonantes, vibrantes e de deixar a pele arrepiada.

 

1. what we cannot speak of must be passed over in silence - sleepmakeswaves

2. in the morning of the magicians - the flaming lips

3. strange rain - patrick watson

4. she sings to forget you - the apartments

5. one more second - matt berninger

6. don't let it pass - junip

7. small thing - ben howard

8. infinite arms - band of horses

9. words underlined - jesse marchant

10. caterpillar - the czars

11. the road - mark eitzel

12. scenes from a circus - a.a. bondy

quarta-feira, dezembro 23, 2020

Dar com uma mão e tirar com a outra

 


 A cantilena já é antiga e todos a conhecemos de cor e salteado: é preciso revitalizar a Rua Direita, proteger o comércio tradicional, apoiar e dinamizar eventos localizados para esse efeito. Este ano, até se foi mais longe, com a realização do Cubo Mágico, que, admita-se, atraiu muita gente para as artérias do centro histórico da cidade.

O discurso fica muito bem em eventos pontuais, entrevistas e comunicados, faz parte daquela cartilha básica para qualquer autarca. Defender, proteger e respeitar o património edificado, os valores, a história e um passado que serviu de sustentação à cidade em que hoje vivemos. Obviamente, estes passos não se revestem, por vezes, da mais elementar justiça. No passado Verão, por exemplo, enquanto o município procurava atrair consumidores para a Rua Direita, esventrava parte da Avenida António José de Almeida, uma artéria que ficou depauperada duplamente: pelas infindáveis obras e pela não realização da Feira de São Mateus, que trazia sempre enorme movimentação. Portanto, Verão e Natal estragados por aquelas bandas.

No centro histórico há discriminação positiva. É perto do edifício camarário, por isso potencia arruadas e as visitas costumeiras aos comerciantes, sempre com grande entourage, comunicação social e muitos sorrisos. No Rossio, temos uma exposição de fotografias desses comerciantes, em grande destaque. Se há lojas fechadas na Rua Direita, ocupam-se temporariamente com serviços de vária índole e exposições. Portanto, se há artéria nesta cidade pela qual o município nutre especial carinho, pelos vistos, é a Rua Direita. Isso parece estar devidamente subentendido. Não se vê o mesmo interesse, com a mesma contundência, por mais nenhuma.

O problema é que, por vezes, como costuma dizer a sabedoria popular, se dá com uma mão para tirar com a outra. Senão vejamos: o município procurou novamente, este ano, revitalizar o comércio naquela rua, num ano bastante complicado. Até estava tudo a correr relativamente bem, quando a edilidade decide, no início da semana de Natal, período de muita movimentação devido às compras natalícias, colocar em funcionamento os novos parquímetros. Recorde-se que, nas ruas mais próximas da Rua Direita, os parquímetros não estavam a funcionar há quase 2 meses, enquanto se preparou a transição para os novos. Portanto, esta medida poderia ser implementada para a semana, daqui a duas semanas, depois das festas natalícias, mas não! Entraram em funcionamento na passada segunda-feira, dia 21 de Dezembro.

Claro que a autarquia conseguiu, desde logo, encontrar aspetos positivos para os munícipes, apregoando que, a partir de agora, passam a existir mais possibilidades de pagamento do estacionamento. Além de apresentar “um interface mais amigável e dinâmico para os utilizadores”, os novos equipamentos permitem dois novos tipos de pagamento para além do tradicional, com moedas: o pagamento com cartão bancário e o pagamento através da APP gratuita “Via Verde Estacionar”. Digam lá, não era mesmo esta a prenda que queriam no sapatinho? A possibilidade de pagar o estacionamento de forma diferente e através de um interface mais amigável? Enfim, nem sabemos a sorte que temos!...

21 de Dezembro! Questiona-se a data, obviamente, porque este executivo camarário, afinal, sempre fez tudo pelos comerciantes do centro histórico. Ou, pelo menos, apregoava que o fazia. Mas quando chegam os dias de maior bulício, em que as pessoas procuram efectuar as suas compras para a consoada e dia de Natal, as prendas para os familiares e amigos, o município e a SABA, empresa concessionária dos parques, começa a cobrar-lhes o estacionamento de uma forma “amigável”. Num ano como este, traria muito prejuízo a estas duas entidades adiarem por duas semanas a entrada em vigor dos novos equipamentos, para benefício dos comerciantes? Creio que teria ficado bem à autarquia essa manifestação de apoio e essa preocupação. A não ser, claro, que a pressão da empresa concessionária tenha sido bastante feroz, no sentido de, também ela, tirar proveitos desta época natalícias. O projecto do MUV Park (esta mania dos estrangeirismos fede a bacoquice pindérica) foi apresentado em Julho passado. Se passaram quase seis meses, que diferença faria mais uma ou duas semanas?

Todos sabemos como pode ser caótico o estacionamento em Viseu, especialmente para quem quer aceder ao centro histórico. Também sabemos como os ditos “interfaces” podem ser um factor dissuasor de potenciais consumidores que não dominem estas modernidades das smart cities. Portanto, vamos somar a preocupação de encontrar um lugar para estacionar na cidade (cada vez mais complicado), à adaptação ao raio do interface e ao preço a pagar por várias horas de compras. Por contraponto, temos várias superfícies comerciais espalhadas pela cidade com estacionamento abundante e gratuito, de fácil acesso, com muito menos problemas logísticos e com uma oferta e variedade superior. O que é que acham que a maioria das pessoas escolhe? Quem é que pode criticar os magotes de pessoas que vão fazer as suas compras de Natal nesses locais?

O comércio tradicional precisa, claro, de apoio e de incentivos. Precisa de ruas engalanadas com decoração natalícia, luz e cores vivas, lojas atraentes, produtos apetecíveis e em quantidade e variedade suficiente. Não precisava, certamente, de uma medida destas numa semana crucial para a estabilidade dos seus negócios.

quinta-feira, dezembro 17, 2020

Eu é que devia ser o Presidente!...



O poder das redes sociais exacerbou e levou ao extremo aquele velho adágio popular que nos diz que “quem não é visto não é lembrado”. Profissionais de vários sectores económicos, culturais ou de outra índole passavam, antes, toda uma vida na penumbra, satisfeitos por cumprirem as suas obrigações laborais, dentro da maior assiduidade possível, desde que isso significasse o respectivo pagamento do salário no final do mês. Actualmente, esse parece um conceito retrógrado e desfasado de sensatez ou bom senso, sobretudo porque agora há imensos canais de auto-promoção, como o Facebook, Instagram, Twitter, LinkedIn ou Youtube. De forma simples e imediata, qualquer um pode colocar-se em bicos de pés, causar sensação com as suas publicações, fotos ou vídeos, acicatar ódios ou paixões com as suas opiniões ou comentários, indignar apoiantes de um partido ou clube numa semana para, na outra a seguir, anunciar que os defende cegamente até à morte. Não é falta de escrúpulos ou incoerência; chama-se, simplesmente, redes sociais, onde é imperioso aparecer, alvitrar, reclamar, barafustar e maltratar, pelos vistos.

Habituados que estamos, há anos, ao facto de os assuntos mais debatidos e comentados nas redes sociais, ou chamados temas “virais”, virem naturalmente a integrar a agenda política, já nem estranhamos que até as personalidades menos suspeitas acabem, nem que seja por um dia, por estar na berlinda numa determinada altura. Por estes dias, temos Eduardo Cabrita, Rui Portugal ou Pedro Nuno Santos, mas já tivemos Joacine Katar Moreira, Ljubomir Stanisic, João Vaz (o actor do mítico anúncio da Telecel, que mudou de sexo), Rita Latas, Mamadou Ba, Victor Espadinha, Tino de Rans... Enfim, como advogava Andy Warhol, “no futuro, todos terão os seus quinze minutos de fama” (e eu ainda estou à espera dos meus…).

O que não é muito habitual é esse papel ir bater à porta de um jornalista, por maus motivos. Ou seja, não lançou um livro, como José Rodrigues dos Santos (que também foi muito falado na semana passada), Rodrigo Guedes de Carvalho ou Miguel Sousa Tavares, nem está indicado para o Prémio Pulitzer. Nada disso, apenas entrevistou, até agora, dois candidatos à presidência da República.

João Adelino Faria conseguiu algo que poucos políticos se podem gabar, atingir a consensualidade, anexando-lhe uma “virtude” que julgávamos inconcebível: colocar André Ventura no papel de vítima. O nosso “petit Trump” começou a entrevista com apenas 8% na mais recente sondagem para as presidenciais e aposto que duplicou esse valor apenas umas horas depois.

João Ferreira foi, no entanto, a primeira vítima do azedume de Faria, numa espécie de treino intensivo para enfrentar Ventura no dia seguinte. A sua postura no ringue de boxe foi idêntica, embora com menor ferocidade: pergunta, esperar cinco segundos, nova pergunta, esperar mais cinco segundos, voltar a fazer a primeira pergunta porque este nabo não respondeu da forma como eu queria, nova pergunta, referir dez vezes que o entrevistador sou eu, nova pergunta e ai dele que não responda com um mero “sim” ou “não”…

Tornou-se difícil, na primeira entrevista, perceber quem era, afinal, o candidato, tendo em conta a ânsia de protagonismo de Faria. No entanto, João Ferreira lá foi dizendo alguma coisa, embora nunca tenha, em 30 minutos, conseguido concluir uma frase. Na terça-feira, foi a vez de Ventura. Quem tinha visto a entrevista com Ferreira ficou, naturalmente, em pulgas para seguir esta, considerando o feitio truculento e insidioso do fundador do Chega. E as expectativas não saíram goradas. Faria foi implacável no ringue, mascarado de advogado de acusação, falou três vezes mais que Ventura, pareceu ainda mais candidato à presidência do que no dia anterior, tentou encostar várias vezes o entrevistado à parede do estúdio da RTP, falando por cima dele, dizendo apartes, fazendo a mesma pergunta quatro ou cinco vezes, espumando da boca e deitando fumo pelas orelhas. A certa altura, fez-me lembrar Jack Nicholson em “A Few Good Men”, quando soltou o seu célebre “you can’t handle the truth”.

É um país estranho este, em que até num programa humorístico, como o “Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, os convidados têm muito maior tempo de antena, e nem sequer são candidatos à presidência da República. João Adelino Faria não tem um programa de humor, nem um talk-show ou um programa de autor. Está ali para deixar os candidatos exporem as suas propostas e o seu programa eleitoral, para os eleitores poderem avaliar em casa e decidir em quem vão votar. Não está ali para “entalar” os entrevistados, mudando rapidamente de assunto quando este não responde como ele quer, castigando-os cortando o seu raciocínio a meio com nova pergunta.

Parece estar a nascer um novo tipo de jornalista vedeta, assomado por laivos de inimputabilidade e superioridade moral e intelectual, ao jeito de um Miguel Sousa Tavares ou Manuela Moura Guedes, mas num registo tuning, mais aerodinâmico, veloz e furioso. O mais estranho é que Faria nunca tinha apresentado este registo antes, nem na SIC, onde começou, nem na RTP, onde esse registo choca demasiado com a linha orientadora da estação, mais parecendo digno de uma TVI ou CMTV.

Em todo o caso, seja bom ou mau, o canal público é que ganha nas audiências, porque, agora, com o mediatismo conquistado nas redes sociais, ninguém vai querer perder as restantes entrevistas. Creio que todos ansiamos pelo frente a frente com Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa. Com ou sem luvas de boxe, não haverá Lexotans ou Valiums suficientes neste mundo para deter a impetuosidade indomável de Muhammad Ali Faria.

E se, antes, os políticos aproveitavam os programas humorísticos, como o “Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios”, por exemplo, para “limparem” a sua imagem e apresentarem-se como tipos porreiros e acessíveis, agora os candidatos presidenciais estão a contar os segundos para levarem uns sopapos e fazerem papéis de vítima nas entrevistas com João Adelino Faria. Qual Marinha Grande, qual carapuça…

quarta-feira, dezembro 09, 2020

Crónica de uma vitória anunciada

 


 (artigo publicado no dia 7 de dezembro de 2020)

Marcelo Rebelo de Sousa anuncia hoje se avança para as eleições presidenciais, agendadas para o dia 24 de Janeiro de 2021. Após meses de silêncio sobre essa matéria, o presidente da República, que completará 72 anos no próximo sábado, irá fazer a declaração mais previsível de sempre. A um mês e meio das eleições, num contexto pandémico, o que seria deste país se hoje Marcelo Rebelo de Sousa declarasse que não se recandidataria ao cargo?

Em primeiro lugar, seria o primeiro presidente da República a não cumprir o segundo mandato. Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva fizeram dois mandatos, fazendo uma transição natural do primeiro para o segundo. Até as reeleições de Soares e Sampaio foram pacíficas, apesar das fortes emoções provocadas na primeira eleição. Ainda hoje me recordo bem das vitórias suadas de ambos frente a Freitas do Amaral e Cavaco Silva, em eleições bem renhidas. Em 1986, Mário Soares venceu, na segunda volta, por apenas 140 mil votos (51,18% contra 48,82%), depois de Freitas do Amaral não ter conseguido vencer na primeira volta por uma unha negra. Em 1996, Jorge Sampaio obteve 53,91% dos votos, contra os 46,09% de Cavaco Silva, que só chegaria ao lugar dez anos depois. O cenário foi muito mais simples na corrida para o segundo mandato: Soares chegou aos 71%, contra os 14% de Basílio Horta, e Sampaio obteve 56%, contra os 34% de Ferreira do Amaral.

Quanto a Cavaco Silva, teve uma primeira eleição pacífica (50% dos votos, com Manuel Alegre a conquistar apenas 20%) e uma segunda ainda menos problemática (53% contra 19% do mesmo Manuel Alegre). Cenário semelhante teve Ramalho Eanes nas primeiras eleições presidenciais do país, em 1976, que venceu com 61,5% dos votos, muito longe dos 16% de Otelo Saraiva de Carvalho, sendo a reeleição um pouco mais disputada (56% contra os 40% de Soares Carneiro).

Em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa chegou à presidência da República com 52% dos votos, deixando Sampaio da Nóvoa bem longe (22%). Partirá, agora, para um segundo mandato, onde terá pela frente Ana Gomes, André Ventura, Marisa Matias, João Ferreira, Tiago Mayan Gonçalves e o cabotino Vitorino Silva (Tino de Rans).

Goste-se ou não do conteúdo ou da forma, do popularismo dos afectos ou da extrapolação dos sentimentos, Marcelo tem sido o presidente mais próximo dos portugueses que alguma vez tivemos. O seu antecessor foi o exemplo acabado do que pode ser um presidente de República completamente antagónico, distante, alheado e neutral. Tivemos um presidente presente, às vezes até demais, que não resumiu o seu impacto a um raio de 20 quilómetros do Palácio de Belém, que esteve ao lado das populações aquando da calamidade dos incêndios, em 2017, e que agora não vira as costas à luta contra a pandemia, continuando na linha da frente. São situações em que precisamos de um presidente da República proactivo, enérgico, humanista e interventivo.

Claro que protagonizou alguns excessos, embriagado pela popularidade que foi conquistando em todo o país. Lembro-me de uma situação, poucos dias após os trágicos incêndios de 15 de Outubro de 2017, em que Marcelo foi ao Hospital de Viseu visitar as vítimas. Acompanhei-o, como jornalista, em todo o percurso, menos nas enfermarias, e ele nunca se furtou a uma selfie solicitada pelos profissionais de saúde que ia encontrando, distribuindo sorrisos, gargalhadas e cumprimentos ruidosos. O momento era de consternação e tristeza, mas o chip de presidente dos afectos sobrepunha-se a todos os outros, transformando uma visita de pesar e de conforto às vítimas numa qualquer arruada de campanha eleitoral.

Quando traçamos uma comparação, novamente, com o seu antecessor, saltam à vista as gritantes diferenças de personalidade. Voltamos a ter alguém no cargo que justifica a existência desse mesmo cargo, quando de 2006 a 2016 ninguém sabia para que raio servia um presidente da República. Além disso, trouxe harmonia e consensualidade política ao país, surgindo novamente como a escolha dos dois principais partidos nacionais. Nas próximas eleições, não terá adversário à altura, mais uma vez.

Todos sabemos que Marcelo se vai recandidatar. Mas imaginem que anunciava o contrário e que, a 48 dias das eleições, nem o PS, nem o PSD tinham candidato! Como seria? Quem se chegaria à frente? Se, com Marcelo, poucos se atreveram a ir a eleições, receando uma derrota inapelável, quem colocaria de imediato a campanha a rolar para lhe suceder? Porque concorrer contra Gomes, Ventura, Matias e afins não seria o mesmo do que enfrentar Marcelo…

Com quatro partidos a apresentar candidato próprio, Bloco de Esquerda, Chega, PCP e Iniciativa Liberal, não restaria outra solução a PS e PSD. Não me parece plausível que o PS apoiasse Ana Gomes, que já tem o apoio do PAN. O mesmo aconteceria com o PSD em relação a André Ventura. Sim, eu sei que esse tiro no pé já foi executado nos Açores, mas não creio que Rui Rio tenha vocação para kamikaze. Ou seja, o que nos restaria em termos de figuras presidenciáveis? João Soares? Marques Mendes? Pedro Passos Coelho? António José Seguro? Morais Sarmento? Rui Rio? Pedro Santana Lopes? Alberto João Jardim? (porque não, o Tino de Rans também é candidato…)

Os portugueses têm andado entretidos este ano e motivos não faltam. O mandato do actual presidente da República passou rapidamente. Os nomes que surgiram para a corrida presidencial não estimularam ninguém, nem o próprio Marcelo. Vamos ter eleições daqui a 48 dias e sabemos antecipadamente quem vai ser o vencedor. Ou seja, aquelas épicas eleições para o primeiro mandato de Soares e Sampaio não se repetirão tão cedo. Talvez em 2026 tenhamos a oportunidade de ter mais do que um candidato forte. Apostas? Eu deixo as minhas: António Guterres, Durão Barroso, Paulo Portas e Rui Moreira. Quem ganharia?