segunda-feira, novembro 19, 2018

quando os olhares convergem



raros eram os dias em que ele não frequentava aquela pastelaria. o vício do café levava-o há mais de uma dezena e meia de anos ao mesmo local, onde, por norma, escolhia a mesma mesa. a rotina era tão intrínseca que a própria funcionária do estabelecimento ficava admirada quando ele ficava numa mesa diferente. 
os anos foram passando, com poucas variações na forma de pedir o café ("boa tarde, queria um café curto, se faz favor!"), na (falta de) interacção com os outros clientes ou mesmo na duração daquele momento diário. os dias misturavam-se uns com os outros, sem nada de surpreendente a reter além de um ou outro cliente novo e da natural rotação de funcionárias. quando ele entrava e se sentava, sabia que caras ia encontrar e isso sossegava-o, porque se sentia enquadrado e confortável. 
de entre as dezenas de rostos familiares, havia um que não deixava de lhe suscitar uma grande curiosidade, porque era a única pessoa naquela pastelaria que não aproveitava aqueles minutos para descomprimir, descansar os olhos e simplesmente saborear o seu café (no caso dela, chá. sempre chá). os dias passavam e a sua postura mantinha-se inalterável: olhos fixos num livro, sempre muito agasalhada, como se nunca estivesse calor suficiente para ela largar todas as peças de roupa que insistia em colocar em cima do seu corpo, e o mesmo ar alienado e distante, como se apenas o corpo dela ali estivesse e a mente flutuasse ao ritmo das palavras que lia. 
os anos passaram, muitos anos mesmo, e todos os dias, à mesma hora, no mesmo sítio, repetia-se, invariavelmente, a situação: ela nunca levantava os olhos dos livros que levava consigo religiosamente, ele à espera de um olhar que fosse. dois seres presos no conforto da sua timidez e introversão, que apenas queriam passar despercebidos naqueles minutos diários na pastelaria. ela bem tentava... mas ele reparava nela todos os dias.
passaram-se vários anos e, por estes dias, eles continuam a frequentar a mesma pastelaria, só que, agora, na mesma mesa. as roldanas gigantes que fazem a vida dar voltas sem fim resolveram parar naquele dia 18 de novembro, pelas 11 horas, para se desamarrar aquele tão ansiado olhar, desejado há tantos anos. demoraram mais de uma década a eliminar as mesas e as cadeiras que os separavam, diariamente, naquela pastelaria, até ficarem, finalmente, juntos. 

escolhem sempre a mesma mesa, a que tem a palavra "doce" estampada, porque foi nessa que tomaram café juntos pela primeira vez, naquele dia de novembro. os anos passam, mas o brilho nos olhos de ambos quando estão juntos mantém-se inalterável desde então...