quinta-feira, setembro 19, 2019

viagem

duas pessoas decidem fazer uma viagem sem destino e sem perspectiva de regresso. carregam o carro com a bagagem de cada um e metem-se ao caminho. a viagem corre muito bem na primeira centena de quilómetros. boa conversa, músicas cantadas em dueto e sorrisos estampados nos rostos.
ao quilómetro 379, a primeira contrariedade: furou um pneu. um esforço adicional daqui e outro dali e em pouco mais de meia hora o problema ficou resolvido, reiniciando-se a viagem.
entre paragens para visitas, fotografias, refeições e dormidas, a viagem seguia pacífica, envolta numa cumplicidade emocional indisfarçável e num sentido de admiração e respeito mútuo. todavia, tal não impedia que as contrariedades continuassem a aparecer. eles chegavam, por vezes, em forma de multas por excesso de velocidade, reparos à adequação da condução em virtude das condições meteorológicas adversas, filas intermináveis de trânsito, ocasionais acidentes rodoviários ou ainda de problemas mecânicos do automóvel. mas eles, após uma análise cuidada aos imprevistos que iam surgindo, alguns deles demorando mais tempo que outros, seguiam caminho, nem sequer equacionando a hipótese de voltar para trás ou de desistir.
a seguir aos instantes mais conturbados, chegavam invariavelmente momentos de plenitude, contemplação, paz e realização. em todos os momentos, bons e maus, o coração estava sempre aconchegado e embevecido com as juras de amor que se trocavam, com o calor dos olhares apaixonados e com o toque que transmitia serenidade e aquela distinta sensação de se estar no sítio certo, ao lado da pessoa certa e parte de algo que fazia todo o sentido, por toda a corrente emocional que ligava dois seres deslumbrados e ainda incrédulos com a felicidade que lhes tinha vindo parar ao colo.
e a viagem seguia, nem sempre pelas melhores estradas, o que causava algumas perturbações momentâneas, mas rapidamente surgia uma nova auto-estrada e o sol voltava a brilhar.
mas, ao quilómetro 728, aconteceu o "evereste" dos imprevistos: o carro avariou e eles tiveram de parar. desnorteados, tentaram encontrar justificações para aquela avaria. um dizia uma coisa, o outro apontava outra; um avançava uma solução, o outro aventava uma outra. não tardou até que chegassem as acusações mútuas de negligência ou descuido no manuseamento da viatura. um dizia que bastaria chamar o mecânico e esperar um pouco enquanto o carro era reparado; o outro entendia que não valia a pena e que ainda não estariam longe demais para voltar para trás e esquecer a viagem. um queria seguir a viagem; o outro, agastado com tantos imprevistos, decidiu ficar por ali.
nenhum deles fazia ideia das paisagens que se seguiriam naquela viagem, que fotografias tirariam em dezenas de cidades, que refeições saboreariam em localidades pitorescas, que vinhos provariam ou em que hotéis dormiriam. os quilómetros que se seguiriam eram uma incógnita, tal como o foram, afinal, todos os quilómetros que eles já tinham percorrido. mas a viagem acabou ali, naquela avaria. um deles voltou para trás. o outro ficou ao lado do carro, a insistir, a tentar ligar novamente a viatura, porque lhe parecia inconcebível que tivessem chegado até ali e não continuassem a viagem. algum tempo depois, também desistiu, depois de sentir que tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para continuar em frente, mas não havendo carro, nem companhia, tal seria impossível. aqueles quilómetros realizados, as paisagens contempladas e os momentos vividos a dois, a cantar, a passear de mãos dadas, a tirar fotografias com a máquina e com a alma, tinham ficado para trás. não houve coragem para continuar a viagem, substituindo a viatura, ou prosseguindo de autocarro, de comboio, de avião. alternativas não faltavam, mas, porventura, não estariam predispostos a passar novamente por mais imprevistos ou para percorrer as tais estradas menos boas quando não havia auto-estrada. mas fica a sensação de que já tinham passado pelas maiores agruras quando decidiram acabar aquela viagem.
o que resta agora, são apenas recordações, o vazio de uma ausência que nunca tinha sido tão prolongada, uma dor pungente e dilacerante de uma saudade que não se consegue alimentar, uma vontade de gritar a tudo e a todos "vocês viram-na?", "como é que ela está?", "como é que tem passado?", ou de pegar no telemóvel e usar uma das dezenas de possibilidades de entrar em contacto. mas antes desse ímpeto chega um outro, o receio da resposta, o medo de que uma palavra mais ríspida possa provocar, o pânico de não sentir na outra pessoa aquilo que outrora era automático, a cumplicidade, a sintonia sentimental, a mesma ansiedade por chegar, a mesma vontade de tocar, de passar as mãos pelo cabelo, de deitar a cabeça no peito, de agarrar algo que se sente como nosso, só nosso, intransmissível, único e indivisível.
 o dilema é cortante, porque o carro continua lá, no quilómetro 728, e há uma pessoa que não sai do lado dele, à espera de algo que o coloque novamente a andar. enquanto houver carro e chave, existirá sempre uma hipótese de ele voltar a fazer-se à estrada. nunca o chavão "enquanto há vida, há esperança" fez tanto sentido. não é crime nenhum gostar de alguém; não é crime nenhum ter uma imensa vontade de dizer a essa pessoa que estamos cheios de saudades; não é crime nenhum manter viva esta premência de a voltar a ter nos braços; não é crime nenhum dizer "eu amo-te". posso estar "broken", mas continuarei ao lado do carro, no quilómetro 728, até não haver mais esperança, até o carro ser rebocado de vez.

"and i´m running out of words
I still love you like the very first time"

https://www.youtube.com/watch?v=kdjELYZ5GbQ

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