quarta-feira, julho 09, 2008

capítulo IV

capítulo IV
encarei o fim do meu casamento de 16 anos com a sónia de uma forma natural. há muito que procurávamos caminhos opostos e tínhamos ambições distintas. apenas nos limitávamos a partilhar a mesma casa nos últimos tempos, incapazes sequer de um beijo na face quando ela saía de casa ou chegava do emprego. enquanto fazia as minhas malas, tentei lembrar-me da última vez que tínhamos feito amor. a única data que me veio à cabeça foi a do dia de aniversário do marco, em outubro, há muitos meses atrás. depois da festa lá em casa, ele saiu com os amigos e eu e a sónia ficamos sozinhos em casa. eu estava bem disposto, bem bebido; ela não sabia por onde começar a arrumar a mesa e a sala, que estava de pantanas devido à "passagem" de um grupo de dezena e meia de adolescentes famintos, todos eles munidos do inseparável telemóvel. aliás, até creio que eles comunicaram uns com os outros por esse meio, tal a avidez com que manuseavam o aparelho. quando se partiu o bolo, depois dos parabéns, estava mesmo à espera que o marco mandasse sms's aos amigos a perguntar se queriam bolo. enfim... juventude! no meu tempo havia o cubo mágico, o walkman, os headphones. mudam-se os tempos, mudam-se as distrações juvenis. mas, apesar de tudo, acho que nunca andei vestido com umas calças pelas virilhas e com as cuecas a verem-se. nessa noite, quem estava impecavelmente vestida era a sónia. de vestido preto, pelos joelhos, e com um acentuado decote, por onde espreitavam parte dos seus vistosos seios. nessa noite desejei-a com intensidade e não descansei enquanto não a possuí. fizemos amor na cozinha, em pé. lembro-me que, durante o acto, me veio à cabeça a cena do filme "basic instinct", em que o michael douglas e a jeanne tripplehorn se envolvem da mesma forma. no filme, eles acabam nas costas de um sofá. na minha cozinha, acabamos na mesa. mas quer-me parecer que nós prolongamos mais a "cena" do que o par cinematográfico (também não era difícil, no filme a cena demora uns 40 segundos). foi bom, foi mesmo muito bom. por isso é que custa tanto a perceber por que motivo não o fazíamos mais vezes. creio que esse orgasmo na cozinha foi mesmo a última coisa que fizemos juntos.
a questão da custódia do marco era um assunto praticamente resolvido à partida. como iria discutir isso com uma mãe advogada? concordamos que seria melhor ele ficar. o acordo com a sónia foi colocarmos o apartamento à venda e depois dividirmos o dinheiro. assim como eu ficar com o marco aos fins de semana, de quinze em quinze dias. por isso, quando saí de casa, num quente dia de março, fiquei com a sensação de que estava a partir para umas férias sozinho, na medida em que sabia perfeitamente que ainda ia ver a sónia muito mais vezes. o marco deu-me um forte abraço e, quando encostou a cabeça no meu ombro, disse-me algo baixinho que eu nunca mais esqueci: "eu vou estudar mais, prometo".
quando entrei no táxi, comecei a chorar desalmadamente. lembro-me que, na rádio, passava o "purple rain", do prince. e como eu desejava que estivesse a chover, que as nuvens cobrissem o céu e tapassem o sol. esse sol que me feria, que contrastava seriamente com as trevas no meu interior, com os negros abismos da minha alma. sim, a verdade é que eu era, naquele momento, um homem livre, com carta branca para começar de novo, para um "reset" a todos os níveis; mas a minha sombra no pavimento continuava a ser a de um frágil miúdo assustado.
(continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ui, ui, isto promete...

Este Jorge conseguiu a minha mais profunda simpatia...vida desgraçada, mas sem ser o tipico desgraçadinho...

Não tem havido tempo para a salada, mas tento encontrar sempre 5 minutitos para ver se há novidades.

Muito bem, vamos lá a pôr essa veia de escritor a bombar!!!