capítulo VII
a vida parecia querer começar finalmente a sorrir-me. experimentava sensações novas, redescobria as tremideiras que eu julgava que tinham ficado na adolescência, o bater acelerado do coração, os suores frios, a efervescência da sedução, o prazer de conquistar. a paula teve esse condão de ignição, de me despertar para um recomeço de vida aos quarenta. os cabelos brancos deixaram de ser sinónimo de velhice para passarem a ser sinónimos de charme, de "know how", de experiência e sabedoria. nas saídas seguintes com o andré, depois da festa em casa da paula, cheguei até a ficar assustado com a facilidade com que tudo se desenrolava. era tudo excessivamente fácil, especialmente com o andré. resumia-se a umas bebidas, uns olhares furtivos, dois dedos de conversa e a habitual pergunta "não querem ir para um sítio mais calmo?". como sempre, eu conduzia o carro. o andré nem esperava e abria sempre as "hostilidades" no banco de trás. normalmente, voltávamos para o nosso apartamento, onde cada um de nós se enfiava no seu quarto com a respectiva companhia. uma vez estávamos tão embriagados que só de manhã reparámos que tínhamos trocado as nossas parceiras.
nessas noites, era frequente encontrarmo-nos na cozinha às tantas da manhã, cheios de fome, aproveitando a ocasião para comentar a "performance" das nossas parceiras. uma vez, o andré foi tão eloquente àcerca das qualidades de uma espanhola, de vinte e poucos anos, que eu sugeri uma troca a meio da noite. e ele estava coberto de razão...
foram meses loucos esses, de bebida, sexo e alguma droga. era inevitável não "chocar" com ela. um charro primeiro, depois ecstasy, o que interessava era manter o barco à superfície, a navegar sem obstáculos. e quanto mais entrava neste estilo de vida, mais queria experimentar. o contraste com a minha vida profissional era gritante. sentia a pachorrenta e formal repartição de finanças cada vez mais como uma enorme e apertada camisa de forças. as horas diárias que lá passava eram asfixiantes, "chupavam-me" toda a energia e a vida que a noite me dava. como a tal camisa me apertava cada vez mais, comecei a levar às escondidas uma garrafa de vodka, daquelas que os detectives aconchegavam no bolso das gabardines nos filmes antigos, que escondia na minha secretária. aligeirava, e de que maneira, aquela tortura toda, sem que ninguém desconfiasse. apenas o andré sabia, porque também bebia. graças a deus que a vodka não deixa hálito nenhum. saíamos sempre do trabalho com a nítida sensação que o dia estava apenas nesse momento a começar. bons e despreocupados tempos esses...
para elevar ainda mais os meus índices de felicidade, a sónia deu-me uma excelente novidade quando fui buscar o marco num dos sábados. o apartamento tinha sido finalmente vendido. disse-me para passar no escritório dela na segunda-feira seguinte para tratarmos da papelada. depois de pago o empréstimo ao banco, ainda deu para "encaixar" 25 mil euros. eu fiquei com 10 e ela com 15, por causa do marco. achei justo.
o rapaz sempre fez um esforço e passou de ano. organizei uma grande festa para ele e para os amigos lá em casa. notei que ele me olhava de forma diferente, com algum orgulho até. apresentou-me os amigos todos e, na altura do brinde, agradeceu-me bastante pela confiança que depositei nele aquando da sua "quebra psicológica". foi muito gratificante ter ficado com a sensação que não o tinha perdido, apesar da nossa distância e dos poucos momentos que passava com ele. afinal, não tinha feito tudo mal na minha vida. o marco era a prova disso.
num dos sábados seguintes, fomos ao colombo ao cinema, um programa habitual. íamos sempre à sessão das 15h00, depois de almoçarmos por lá. depois de almoço, estávamos nós na fnac a "queimar tempo", quando vi, na secção dos livros, uma cara conhecida. já estava a "engatilhar" uma abordagem quando o marco se antecipou a cumprimentá-la. aproximei-me dos dois, à espera de uma óbvia apresentação. e ela não tardou. era a sofia ribeiro, professora de história do marco. eu sabia que a conhecia de algum lado... dois beijinhos na face, perfume inebriante, pele imaculada, cabelos rebeldes a escorrerem-lhe pelo pescoço... confesso que fiquei um pouco nervoso. a minha postura foi a mesma do jorge oliveira antigo, não a do novo. as palavras não saíam como eu queria que elas saíssem, a eloquência parecia ter adormecido, o charme engasgou-se com o meu espontâneo regresso à timidez. felizmente, ela estava muito mais à vontade e, basicamente, falou pelos dois. o marco afastou-se para a secção dos cds e eu fiquei a falar com a sofia, que não se cansava de elogiar a sensacional recuperação do meu filho, sobretudo depois de mais uma contrariedade na sua vida, o divórcio dos pais. eu, nos pequenos lapsos de tempo em que não estava totalmente perdido nos seus olhos castanhos, fui capaz de balbuciar alguns sons de concordância. no sentido de "quebrar o gelo", especialmente o meu, que poderia ser facilmente confundido com o icebergue onde bateu o titanic, resolvi perguntar-lhe se já tinha tomado café. ela depois disse algo que eu nunca mais me esqueci, algo que resumia perfeitamente o género de mulher que era, com sentido de humor, cultura geral e simpatia q.b.: - "sim, já tomei café várias vezes. sei perfeitamente o que é". foi o perfeito "desbloqueador". eu soltei uma gargalhada, ela abriu um sorriso resplandecente, quase que de alívio pela minha reacção. ficou ali estabelecido o nosso primeiro sinal de cumplicidade.
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