21h30 – chovia intensamente naquela tristonha
noite de outono, envolta em denso nevoeiro. a estação estava quase vazia e a
sua companhia eram dois tropas e um casal idoso. a premência de nunca chegar
atrasado fosse onde fosse fazia com que chegasse sempre muito antes da hora
marcada. a viagem só se iniciaria, se dentro do prazo, 20 minutos depois.
a chuva teimava em não abrandar e ele caminhava,
dentro da estação, de um lado para o outro, para não ficar com os pés frios. eram
passos trémulos e inseguros, de quem não tinha a certeza se aquele comboio
tinha efectivamente o destino pretendido. olhava à sua volta, como se
procurasse algo ou alguém, mas o nevoeiro cerrado não permitia visualizar muito
além de um raio de dez metros. o nó na garganta acentuava-se a cada minuto que
passava, pensava nas pessoas que ia deixar para trás, das quais não teve
oportunidade de se despedir. a ter que partir, só poderia ser assim, e ele sabia
bem disso, mas essa era mais uma faca espetada no seu amargurado coração.
a espera tornava-se cada vez mais amarga e
insustentável. era um homem dividido: parte dele queria que o comboio chegasse
rápido, para acabar com aquele sofrimento; mas na outra parte ainda residia
alguma esperança de não chegar a partir. as dúvidas começavam a coarctar-lhe os
movimentos e agora era uma homem especado a olhar o vazio em que se tinha
tornado. uma lágrima soltou-se pela sua face abaixo, chamando muitas outras
atrás de si, quando mergulhou nos últimos anos da sua vida e recordou tudo
aquilo que poderia perder dez minutos depois.
o nó na garganta aumentava à medida que os
minutos iam ficando mais curtos para a chegada do comboio. a estação estava
agora muito mais composta, algo que poderia camuflar a sua agonizante solidão,
mas, ao invés, acicatava ainda mais a dor que sentia, porque nenhuma das
pessoas que chegavam eram aquela que ele mais queria ver. o confronto entre os
dois cenários que tinha pela frente dilaceravam-no: ficar ou partir. a razão
mandava-o partir, mas o coração ainda insistia para ele ficar e tentar, mais
uma vez, rectificar o mal que fez, a dor que causou, a desilusão e a tristeza
que provocou na pessoa que sempre menos quis magoar. aquele comboio que iria
chegar poderia ser o recomeço de algo, mas também tinha um enorme carimbo de fracasso
que ele não conseguia escamotear ou deixar de ver.
a chuva continuava teimosa, as pessoas mostravam-se
cada vez mais impacientes, agarrados às suas malas, balbuciando impropérios entre
tossicares, ou falando cada vez mais alto à procura de público para as suas
conversas fúteis sobre o tempo. ele mantinha-se estático, imperturbável e
sereno, apesar da enorme convulsão interior. apenas mexia a cabeça, para a
esquerda e para a direita, quando chegava mais alguém à estação. se fosse
possível ver a sua alma, ela estaria a sangrar o mais escuro dos sangues,
fustigada pela dimensão das suas incertezas.
o frio era agora mais intenso. faltavam cinco
minutos para a chegada do comboio. o espaço que ocupava há cerca de 20 minutos
era cada vez mais reduzido e começava a fartar-se dos “peço desculpa” e dos “foi
sem querer” com que era brindado de meio em meio minuto. o nevoeiro não deixava
perceber se o comboio estaria a chegar, mas a hora aproximava-se e ele ali
estava, ainda sem uma decisão, com os níveis de ansiedade na sua expressão
máxima.
olhava agora ainda mais insistentemente à sua volta, à procura de um rosto específico, de olhos meigos, e daqueles cabelos longos que ele idolatrava e adorava acariciar. o comboio estava agora, oficialmente, atrasado. ele sentiu essa falta de pontualidade como um sinal. assaltava-o a ideia de que a decisão de partir poderia não ser a mais acertada, porque se assim fosse a sua mente não continuaria a enviar-lhe mensagens de desconfiança e incerteza.
olhava agora ainda mais insistentemente à sua volta, à procura de um rosto específico, de olhos meigos, e daqueles cabelos longos que ele idolatrava e adorava acariciar. o comboio estava agora, oficialmente, atrasado. ele sentiu essa falta de pontualidade como um sinal. assaltava-o a ideia de que a decisão de partir poderia não ser a mais acertada, porque se assim fosse a sua mente não continuaria a enviar-lhe mensagens de desconfiança e incerteza.
uma voz abrutalhada interrompeu-lhe o fio de
pensamento, anunciando a chegada do comboio dentro de 5 minutos. ele permanecia
estático, as pernas teimavam em não se mexer, como se estivesse a decorrer um
golpe de estado dentro de si mesmo. olhou para a sua esquerda e, no meio do
nevoeiro, vislumbraram-se, então, pela primeira vez, as luzes daquele adamastor
de ferro que o iria levar para longe de tudo. sentiu o coração a parar de bater e
uma dor lancinante no peito, como se este estivesse a ser apertado por dezenas de cordas. respirar era quase
impossível, assim como engolir, porque o nó na garganta era agora gigantesco.
tinha chegado o momento e rapidamente as pessoas
começaram a movimentar-se, com passageiros a sair, outros a quererem entrar,
acotovelando-se como se fosse uma prova olímpica. pegou nas suas malas e
começou a dirigir-se, sem muita vontade, para o comboio, com meia dezena de
pessoas à sua frente. agora teria mesmo de ir, não havia volta a dar, a decisão
acabou por surgiu naturalmente.
alguém lhe tocou, então, no ombro. no seu estado
quase catatónico e imerso na mais profunda tristeza, ignorou, pensando que
seria mais um “peço desculpa” ou um “foi sem querer”. continuou a avançar na
direcção da entrada, já só restava entrar o casal idoso que tinha chegado à
mesma hora que ele. voltaram a tocar-lhe no ombro, no mesmo ombro, a que se
seguiu uma palavra, uma palavra apenas.
“amor?”
virou-se para trás. dois segundos depois, largou
as malas. os olhares amarraram-se e rapidamente se soltou o beijo mais ansiado
de sempre, que se prolongou até o comboio desaparecer no horizonte.
estava encontrada a resposta para as suas
dúvidas.
ficaram!
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