segunda-feira, agosto 04, 2008

capítulo VIII

capítulo VIII
a sofia parecia estar muito mais descontraída do que eu. sentou-se, pousou a carteira e os livros que tinha comprado numa cadeira e cruzou as pernas, entrelaçando as mãos por cima do seu joelho direito. transpirava descontracção, agindo sempre com uma desarmante naturalidade, como se este género de situações lhe acontecessem todos os sábados à tarde. "tomar um café com um pai de um aluno meu? vamos lá embora!".
- sempre quis ser professora? - perguntei.
- sim, sempre fui muito determinada nesse aspecto. os meus pais diziam que eu só podia mesmo ser professora, porque, nas minhas brincadeiras, imitava sempre os meus professores, as atitudes, a postura rígida e responsável, os raspanetes. até os meus pais eram meus alunos...
- nesse caso, foi para a universidade com o estágio já feito...
- mas mesmo assim ainda tive que lá andar quatro anos até me darem o diploma... foi uma injustiça.
- e escolheu história por vocação ou porque estava decidida a quebrar aquela ideia generalizada de que esse curso é um dos que tem menos saída profissional? quer dizer, ainda ontem um licenciado em história me pesou um quilo de uvas...
- eu sabia disso, como é óbvio, mas a história sempre me fascinou. quantas vezes arranjei problemas lá em casa porque eu queria ver os programas do josé hermano saraiva e os meus irmãos e o meu pai queriam ver futebol. naquela altura ainda não havia quatro televisores por casa, como agora.
- quem ganhava mais vezes?
- eles, porque eram mais. ficaram aliviados quando vim estudar para lisboa.
- e veio de onde mesmo?
- de uma aldeia chamada sarzedo, do concelho de arganil. lembro-me bem dos magníficos verões que lá passei, no rio alva.
- lisboa deve ter sido um choque muito grande...
- sim, nos primeiros meses andei à deriva. perdia os autocarros todos, enganava-me nas paragens, nunca conseguia decorar os horários do metro. enfim, o "pacote" todo, típico de alguém que nunca viveu numa grande cidade. mas também, se não fôssemos nós, os da província, vocês lisboetas não teriam ninguém com quem gozar, não é?
- eu não sou lisboeta. estou apenas à espera de juntar dinheiro suficiente para me pirar. aqui, nunca me senti verdadeiramente em casa.
quando a sofia se preparava para falar, provavelmente para me perguntar de onde é que eu vinha, fomos interrompidos pelo marco, que me veio pedir dinheiro para comprar um cd. enquanto eu procurava na carteira a quantia solicitada, a sofia começou a conversar com o marco, num tom mais sério, fazendo valer o seu estatuto de professora, sobretudo porque existiam fortes possibilidades de ela voltar a ser a sua professora de história no 11º ano. quando lhe dei o dinheiro, o marco disse-me para não me esquecer que o filme que íamos ver começava dentro de dez minutos, ao que eu lhe respondi "mas vamos ver um filme? qual filme". a sofia riu-se, por achar que eu estava a brincar com o marco. mas não estava. naquela altura sentia-me alheado de tudo, de tão inebriado que estava, por me sentir bem, finalmente, a fazer parte de uma conversa e por sentir que poderia ficar ali quinze meses seguidos apenas a falar com a sofia. foi como se toda aquela rotina do sábado à tarde com o marco, tão rigorosamente cronometrada e previamente estabelecida, se tivesse evaporado, de repente, da minha cabeça. e foi uma sorte o marco ter-me pedido apenas dinheiro para comprar um cd, porque se ele me tivesse pedido a chave do carro eu era bem capaz de lha dar.
o marco despediu-se da sofia com um "até p'ró ano stôra. boas férias!". ela respondeu "igualmente. fica descansado que eu aviso o teu pai quando chegar a hora do filme". esbocei um sorriso de cumplicidade, mas por dentro dava pulos de alegria. esta frase dela "caiu-me" maravilhosamente bem. encaixou. foi a perfeita conclusão para aquele pequeno interlúdio com o marco. foi o assumir de que também ela queria mais tempo comigo, caso contrário, teria olhado para o relógio, dizia que já estava atrasada para qualquer coisa e "entregava-me de bandeja" ao meu filho.
o tema da conversa passou a ser o marco, as suas virtudes, potencialidades e, sobretudo, a coragem que demonstrou perante as adversidades com que foi defrontado: a morte do avô e o divórcio dos pais. apesar da natural quebra a meio do ano, ele conseguiu dar a volta por cima e acabar o ano com notas razoáveis.
- fiquei realmente impressionada com a maturidade que o marco revelou no último período. confesso que não estava à espera que ele voltasse tão rapidamente ao seu nível.
- tenho a impressão de que ele se sentiu culpado, de certa forma, pela separação dos pais. eu e a minha ex-mulher entramos em discussão por causa dele, porque ela queria proibi-lo de sair com os amigos e eu defendi-o, dizendo que tinha confiança nele. como foi a última discussão, a que precipitou o fim, acredito que ele se tenha sentido assim. aliás, quando saí de casa, ele prometeu-me que ia estudar mais. cumpriu, como se pôde verificar.
- digamos que, em parte, o vosso divórcio acabou por lhe fazer bem...
- ele cresceu muito neste último ano em termos psicológicos e emocionais. gostava muito do avô artur, de ir com ele à pesca e ao futebol, de o ajudar no quintal. as férias em tomar eram indispensáveis para ele. e depois, de repente, ficar sem essa parte importante da sua vida, foi um choque demasiadamente brutal. comparado com isto, a separação dos pais foi quase como uma ida ao dentista.
- e como é que ele tem reagido?
- muito bem. ficou com a mãe, como era evidente. eu estou com ele aos sábados, de quinze em quinze dias. mas não moramos muitos longe um do outro. a sónia também facilita bastante, caso eu queira sair com ele noutros dias. o nosso casamento até acabou muito bem. digamos que foi por mútuo acordo. se calhar, até somos mais amigos agora do que quando éramos casados...
- bem, sempre é verdade então que depois da tempestade vem mesmo a bonança!...
- boa série essa. era com o lorne greene e o michael landon.
- sim, o "anjo na terra".
- exactamente. andei anos a ansiar por uma série chamada "tempestade" e que a colocassem antes do "bonanza". seria giro ouvir a fátima medina ou a helena ramos anunciar a programação.
- seria bem interessante, sem dúvida. lamento dizer que está na hora do vosso filme. já passaram dez minutos.
- mas ainda nem tomamos café... - referi, bastante espantado.
- também é verdade que nos esquecemos de o pedir - disse a sofia, sorrindo.
o marco aproximava-se lá ao fundo. eu sentia o nó a apertar na garganta, ao pressentir uma eminente e incontornável despedida. e vinham lá as férias de verão. quando é que eu a tornaria a ver? levantamo-nos. ajudei-a com o saco dos livros. lancei um último olhar à mesa, para ver se nos tínhamos esquecido de alguma coisa, e virei-me para ela. contra a minha vontade, o tempo não parou. os ponteiros continuavam a marchar imperturbáveis. o marco continuava a caminhar na nossa direcção. ficámos uns bons dez segundos assim, a olhar um para o outro, sem dizer nada. até que, no café, alguém deixou cair um copo ao chão, desviando-nos o olhar.
- bem, tenho que ir andando. vocês têm o filme para ver.
- sim, é verdade. é pena. gostaria de ficar mais tempo a falar consigo - até hoje me custa a crer que disse estas palavras, que tive coragem para tanto.
- talvez um dia a gente possa, efectivamente, tomar um café juntos. hoje perdemos essa oportunidade.
o marco chegou ao pé de nós e disse "vamos pai, já estamos atrasados". a sofia entendeu que era a "deixa" dela e começou a afastar-se, sorrindo e dizendo adeus com a mão direita. o marco começou também a afastar-se, mas em direcção oposta. eu permanecia estático, sem reacção, a ver a sofia cada vez mais longe, impotente para travar a sua marcha e incapaz de proferir fosse o que fosse, tal era a minha frustração. "pai, anda!". "sim, sim, já vou".
escusado será dizer que o filme me passou completamente ao lado. aliás, nem me lembro que raio de filme é que fomos ver nessa tarde de sábado. mesmo que fosse a melhor obra cinematográfica de todos os tempos, a minha indiferença nesse dia estaria sempre garantida. não conseguia deixar de pensar que poderia estar ainda a falar com ela. e, pior ainda, não parava de me recriminar por não lhe ter pedido um contacto que fosse.

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