segunda-feira, julho 07, 2008

capítulo III

capítulo III
foram penosos os primeiros meses. recusava-me a sair de uma confortável, mas compreendida, depressão. ela serviu-me de camuflagem para muitas coisas que eu não queria fazer. as tais coisas que antigamente pedia ao meu pai para resolver. de certa forma, estava a negar-me a aceitar as responsabilidades inerentes ao meu papel de chefe de família, pai de um filho menor, agora que acima de mim não tinha mais ninguém. desamparado de mãe e pai, os holofotes apontavam agora para mim. era eu que tinha, agora, de resolver os problemas dos outros. mas como, se eu nem os meus conseguia resolver? nunca soube.
o ambiente degradava-se de dia para dia em minha casa. era raro o dia em que não havia discussões. as contas avolumavam-se, muito por causa de ter ficado três meses de baixa psicológica, as notas do marco pioraram, a sónia acudia a vários fogos mas era incapaz de lidar com tudo isto. ainda por cima era a única que trabalhava por esta altura. eu vegetava por casa, comendo tostas mistas ao almoço, jogando playstation e vendo má televisão. não abria a porta a ninguém, não atendia o telefone nem o telemóvel. estive completamente isolado do mundo durante três meses. a minha única tarefa diária era ir buscar o marco ao liceu, às 17h30. numa dessas situações, enquanto esperava no carro pelo meu filho, fui interpelado por uma muher, que aparentava ter trinta e poucos anos de idade, de calças de ganga justas e top preto. tinha longos cabelos pretos e uns olhos esverdeados. obviamente, quando a vi aproximar-se do meu carro, tentei recompor-me o melhor possível. a minha grande dúvida, no momento, foi se mantinha ou não os óculos de sol. não queria que ela visse as minhas olheiras mas, por outro lado, sempre considerei uma grande falta de educação falar com alguém que não tira os óculos escuros para falar comigo. por isso tirei-os. no preciso momento em que ela ia começar a falar. não pude deixar de notar um ligeiro esgar de desconforto e alguma repugnância perante o que se lhe apresentava diante dos olhos.
- boa tarde, o senhor é o pai do marco, não é?
- sou sim - afirmei, tentando dizer o menor número de palavras possível, não fosse ela reparar, igualmente, no meu terrível mau hálito. onde é que há um cigarro quando um tipo precisa de um?
- eu sou a professora de história do seu filho. chamo-me sofia ribeiro. soube pelos colegas do marco que o avô tinha morrido. os meus sentimentos.
- obrigado.
- ele foi-se um pouco abaixo, como deve saber. pelo que os outros professores dele me contam, também aconteceu o mesmo nas outras disciplinas. por isso, estou um pouco preocupada com ele, que sempre foi um aluno exemplar. na altura do falecimento ele não teve nenhum acompanhamento psicológico?
- não, não teve. sofreu muito, é verdade. ele gostava muito do avô artur.
- já andava há uns tempos para falar consigo ou com a sua mulher, porque eu considero que ele devia ser acompanhado psicologicamente. é uma pena ele desperdiçar a inteligência que tem desta forma. vem aí o terceiro período e ele precisa de subir as notas para não perder o ano.
- sim, tem que ser. tem que ser. - confesso que não me lembrava de nada minimamente inteligente para dizer. já não me lembrava da última vez que tinha falado com alguém. talvez tenha sido no funeral.
- eu vou deixar-lhe um cartão da escola, com o número do gabinete de acompanhamento psicológico, para a eventualidade de o senhor e a sua esposa decidirem aceitar esta minha proposta.
- sim, muito obrigado. logo ao jantar discutirei o assunto com a minha mulher.
ela sorriu e despediu-se, afastando-se do meu carro devagarinho. pelo menos era assim que eu a via, numa espécie de câmara lenta, com os cabelos selvagens a debater-se com o vento numa luta inglória. sofia ribeiro! lindo nome! no meu tempo não havia professoras assim. ou que se vestissem assim. raio de sorte!
durante o jantar, toquei no assunto. o marco sentiu-se incomodado, logo dizendo que não precisava de acompanhamento nenhum. a sónia, de forma ríspida e autoritária, fez-lhe ver que o seu rendimento escolar tinha que ser alterado rapidamente, ameaçando proibir as suas saídas ao sábado à noite. o marco olhou para mim, à espera de defesa. vi nos olhos dele que aquela não era a altura propícia para o desapontar, que me estava a estender uma mão à espera do salvamento de uma queda inevitável. era este o momento.
- marco, a mãe está a brincar. não vai nada proibir-te de sair aos sábados. apenas tens que perceber que tens que te aplicar e estudar mais. nunca nos deste problemas na escola. não vai ser este ano, pois não?
o marco esboçou um enorme sorriso, aliviado, contente pelo meu voto de confiança.
- marco, vai para o teu quarto, por favor, que eu quero falar com o teu pai. - disse a sónia.
de repente, senti colocarem-me no pescoço umas grossas cordas, às quais deram um daqueles nós que só se aprendem nos escuteiros. o pontapé na cadeira que me deixaria suspenso no ar abandonado à minha sorte foi dado pela sónia ainda antes de o marco ter chegado ao quarto:
- esta foi a última vez que me desautorizaste à frente do nosso filho. estou farta! chega, acabou! passo o dia inteiro a trabalhar, para poder pagar as nossas contas, para pôr comida na mesa, gasolina nos carros, e é esta a recompensa que eu tenho? tu ficas em casa o dia todo, sabe-se lá a fazer o quê, não te preocupas com nada nem com ninguém, não queres saber onde eu estou, onde está o teu filho, o que come, com quem anda, e depois és tu, ainda por cima, que dás a palavra final sobre o que é melhor para ele? isso não, nem pensar. eu, que faço uma ginástica terrível para arranjar tempo para tudo, trabalho, casa, escola do marco, compras... a única coisa que te peço é que o vás buscar à escola todos os dias. achas muito? depois quando acontecem situações como esta, é o paizinho que é bestial, porque faz as vontades todas ao filhinho. eu não, eu sou sempre a má da fita. para mim, acabou! estou esgotada! farta disto tudo!
como poderia eu rebater isto? era tudo verdade. tudo! apenas um grande canalha tentaria argumentar algo em sua defesa, utilizando as artimanhas possíveis e imaginárias para reverter a situação a seu favor. a verdade tinha-me batido de frente, como um autocarro a chocar contra uma bicicleta. o meu papel era o de ficar estendido no chão, com as rodas tortas, os pedais partidos e o volante desfeito.
(continua)

2 comentários:

Anónimo disse...

Keep going...

Sónia

tulipa_negra disse...

falta muito para a proxima parte? ;-)