quinta-feira, outubro 22, 2020

Perguntar não ofende

 


 O Município de Viseu lançou uma rubrica mensal, que terá início no dia 22 deste mês, intitulada “O Presidente responde”. Na definição do evento, refere-se que esta é uma rubrica de “contacto direto” entre os munícipes e o presidente da autarquia. Pretende-se, assim, que os cidadãos façam perguntas, “sem tabus nem preconceitos”, como se refere nas normas de participação, para Almeida Henriques responder em formato de vídeo. “Todas e todos são livres de colocar as questões que gostariam de ver esclarecidas”, afirma-se também, o que se enaltece, por respeitar os valores democráticos da sociedade em que vivemos.

A ideia preconizada é simples: os munícipes devem enviar as questões até às 10h00 do dia 21, sendo estas respondidas, no tal formato de vídeo, às 13h00 do dia 22. O autarca terá três minutos para responder a cada questão e a sessão terá cerca de 30 minutos de duração, o que dará espaço para 10 perguntas. Sublinha-se, nas normas de participação, que das questões remetidas será seleccionado “um conjunto representativo” para o presidente responder, procurando-se, desta forma, “uma maior abrangência de abordagens e temas”. Diz ainda o município que as sessões serão mensais e que decorrerão sempre na última quinta-feira de cada mês.

O que se pode depreender disto tudo até agora? Primeiro, não há nenhum “contacto direto”, como se observa, ao contrário do que se pretende fazer crer. Segundo, a última quinta-feira de Outubro é no dia 29. Terceiro, o autarca fica com bastante tempo, mais de 24 horas, mesmo considerando o tempo despendido na gravação do formato de vídeo para publicação, para trabalhar, com a sua equipa, as respostas. Quarto, todos gostaríamos de saber quem irá escolher o tal “conjunto representativo abrangente”. Ou seja, é uma espécie de censura controlada, porque não convém tornar este exercício em algo penoso ou até embaraçoso para o executivo camarário. Logo agora, ao fim de vários meses covidianos a dar “tiros nos pés”…

Apoiando-nos no historial de relações azedas com a oposição, sempre que esta tenta ser, efetivamente, oposição, é fácil chegar à conclusão de que este executivo não gosta mesmo nada de ser criticado ou que lhe apontem incongruências, falhas ou discrepâncias. São anos e anos de desaforos vomitados para cima dos vereadores da oposição em assembleias municipais e reuniões de câmara, simplesmente porque, de vez em quando, lá calha aparecer uma dúvida ou um pedido de justificação. Portanto, se este executivo é assim com a oposição, o que não fará com os titulares das perguntas mais impertinentes que surgirem?!

Sendo assim, certamente que, com este “contacto direto”, estarão à espera de perguntas como “É mesmo muito difícil ser presidente da câmara, não é?”, “Para qual canal de televisão gosta mais de dar entrevistas?”, “Sabe onde é que o Jorge Sobrado compra os seus chapéus?”, “Tenho uma prima e um tio que trabalha na câmara. Posso enviar o meu CV?” ou “Qual é a primeira coisa que faz quando chega à câmara?”. Nada de politicamente incorreto ou que possa ferir susceptibilidades, portanto.

Mesmo correndo esse risco, lanço aqui as minhas perguntas ao presidente da autarquia, que fiz seguir, tal como recomendado, para o mail presidencia@cmviseu.pt. Porque, lá está, perguntar não ofende.

- Por que motivo, sempre que há furacões ou depressões, com chuvas fortes e persistentes, se registam cheias nas mesmas artérias da cidade e por que razão, mesmo com esses locais bem identificados há anos, ainda não se tomaram providências para resolver esse problema?

- Em 2013, no início do seu primeiro mandato, disse que queria ficar com o seu nome associado ao regresso do comboio a Viseu. Quando pensa começar a fazer alguma coisa para esse desenlace?

- Depois dos atrasos na distribuição de máscaras aos munícipes e dos portáteis aos alunos (todos os outros municípios do distrito foram muito mais rápidos e eficientes), que justificação encontra para terem sido distribuídas, através do Viseu Educa, máscaras aos alunos do concelho que não cumprem os requisitos mínimos de proteção?

- Qual a explicação para se ter destruído o circuito de manutenção do Fontelo e se ter optado pela “plantação” indiscriminada de instalações de arte de duvidosa qualidade no seu espaço? Já não havia espaço na Quinta da Cruz? Nem no Parque Aquilino Ribeiro? Ou no Parque Urbano de Santiago?

- Na mesma medida, o que levou o município a vedar, no Fontelo, o acesso à água em todos os fontanários existentes, sabendo-se que é um local de excelência para praticar desporto e para convívios familiares? É notório que a água não é o líquido preferido deste executivo camarário…

- O Viseu Arena representa um investimento de 6,4 milhões de euros, com um financiamento a 20 anos e taxas de juro bonificadas. Acredita que será inaugurado antes do término do financiamento ou será uma coisa relativamente mais demorada e estará pronto apenas aquando das conclusões da Operação Éter?

- Na mesma linha, fará sentido iniciar, depois de sete anos de análises, avaliações, orçamentos e previsões, os projetos do Mercado 2 de Maio e do Mercado Municipal se não será possível fazer um quarto mandato para os inaugurar?

terça-feira, outubro 13, 2020

Já era tempo de meter a máscara na cabeça!

 

 


To each his sufferings: all are men, condemn'd alike to groan, the tender for another's pain, the unfeeling for his own. Yet, why should they know their fate, since sorrow never comes too late and happiness too swiftly flies? Thought would destroy their paradise. No more; where ignorance is bliss, 'tis folly to be wise.

Trecho do poema “Ode on a Distant Prospect of Eton College” (1742), de Thomas Gray

 

Não haja dúvidas de que esta parece ser a máxima dos difíceis tempos em que vivemos: “Onde a ignorância é felicidade, é tolice ser sábio”. Nem é preciso muito para se chegar a esta conclusão, basta percorrer a pé as principais artérias da cidade de Viseu e observar as centenas de pessoas que se passeiam sem máscara. Algumas, numa clara manifestação de apreço pelos versos finais do poema de Thomas Gray, chegam a deambular pachorrentamente com as ditas máscaras nos cotovelos ou nos pulsos, como se fosse um acessório.

O comandante nacional da Protecção Civil, Duarte da Costa, lamentava-se, no início de Setembro deste ano, quando falava sobre a campanha de tolerância zero ao fogo, que em Portugal se demorou 10 anos até ser verdadeiramente assumido por toda a gente o uso do cinto de segurança nos automóveis. No seu entender, a campanha de prevenção de incêndios enfermará do mesmo mal. E o uso de máscaras em situações de pandemia mundial quantos anos demorará?

Trago hoje à colação três episódios sobre a insensatez do ser humano, curiosamente todos eles registados na Rua Direita, em Viseu.
No primeiro, um casal, na casa dos quarenta, com duas filhas adolescentes, entrava, perto da Casa da Sorte, no recinto do evento Cubo Mágico, no mês de Julho. À entrada, dezenas de recomendações de segurança num painel lateral. Uma das filhas, depois de ver o painel, virou-se para o pai e perguntou: “É preciso colocar a máscara agora?”. Do alto da sua infinita sabedoria, como se estivesse a transmitir a mais douta das opiniões, ele respondeu: “Máscara?! Ó, ó, ó… era só o que faltava agora!”.

No segundo episódio, já em Setembro, dois alunos da Escola Mariana Seixas conversavam na rua. Um deles questionou se deveriam estar a usar máscara, ao que o outro respondeu prontamente: “Por mim, não, e nem a uso mais! Quanto mais depressa apanhar o Covid, melhor, fico já despachado!”.
 
No terceiro episódio, ocorrido hoje mesmo, duas trintonas encontraram-se na rua e encetaram uma conversa, da qual retirei estas três frases: “Ainda bem que te encontro, queria mesmo tirar a máscara, estou farta disto”; “Também vou aproveitar para tirar agora, se tu tiras”; “É que, como se não bastasse, borrata-me a maquilhagem toda”.

Conclusões? Três gerações, três posturas erradas. Um pai que desbarata uma oportunidade para dar um bom exemplo às filhas, dois jovens de vistas curtas centrados apenas neles mesmos e duas mulheres mais preocupadas com aspetos visuais do que com a sua própria saúde.

A maior parte das pessoas tem consciência de que os números estão a subir ou a descer, vêem as notícias, acompanham o evoluir da pandemia no seu distrito e no país. O problema é que nada disto se reflecte, depois, nos seus próprios actos. É só passar pelo centro histórico, na sexta e no sábado à noite, ou no fim-de-semana, para se constatar de que forma as pessoas se preocupam mesmo com a pandemia. São centenas de pessoas sem máscara nas ruas, em grupos nas esplanadas, a desrespeitar normas de segurança. Até podem alegar que estão ao ar livre, mas, caramba, estão praticamente em cima uns dos outros, sem observar as regras de distanciamento.


Começamos a inverter o paradigma quando verificamos que hoje em dia nos sentimos mais seguros num centro comercial, hipermercado, loja ou repartição pública, porque nesses locais é obrigatório usar máscara. Nas ruas e nas esplanadas isso é mais complicado, porque há sempre o bronze do Verão, a maquilhagem irrepreensível, o tratamento dentário, a barba que demorou quase duas horas a aparar para ficar como deve ser, ou o batom Mary Kay, que é “top, top, top”, para mostrar. E, no final de contas, se o Covid aparecer, “pronto, é melhor assim, ficamos já despachados”.

No meio de tudo isto, não é preciso muito para constatar que aqueles que estão mais preocupados com a pandemia são as pessoas com mais idade. Numa Rua Direita cada vez mais envelhecida, eles lá andam de máscara, alguns num desamparo extremo. Vagarosos, trémulos, vulneráveis e frágeis, mas de máscara bem colocada! Já trabalharam e sofreram muito mais do que as incautas novas gerações, têm muito menos conhecimento e acesso à informação do que eles, mas sabem que se deve usar máscara. Reflectem bem a resiliência beirã, a resistência perene e feroz perante as adversidades e a indómita vontade de subsistir. São autênticas lições de vida que nos dão diariamente.


Uma sociedade justa, como aquela que todos desejamos, terá de ter muito mais respeito por eles e pela vida que construíram. “Não se envelhece para morrer”, diz José Tolentino de Mendonça no seu último livro, acrescentando que “quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes”. Saibamos respeitar as nossas raízes!

 

terça-feira, outubro 06, 2020

A geração tipificada

 

 


 Haverá algo mais irritante do que estarmos a falar com alguém que usa a mesma muleta linguística repetidamente? É certo que não é uma situação tão grave como ouvir calinadas como “ouvistes”, “quaisqueres” ou “”hádem”, mas aleija na mesma. Foram anos a aguentar o martirizante “é assim”, o erróneo “prontos”, o inexplicável “a modos que” ou o transversal “cena”.

“A modos que, para mim, essa é uma cena marada, porque é assim, não estou nem aí para essas coisas, prontos. A minha cena não é essa, mas isso sou eu, tás a ver?”.

Sim, eu sei, depois de uma frase destas até a minha sombra fugiria mais depressa que eu. Mas, e este é mais um tique linguístico, “é o que há”:

Vem isto a propósito da enervante ascensão ao poder da muleta “tipo”, pulverizando todas as outras, sobretudo entre as camadas etárias mais jovens. Actualmente, é virtualmente impossível falar com alguém na faixa etária 15-30 sem ouvir 357 “tipos”. Ninguém sabe para que serve, mas a constante repetição da palavra despoleta um desconforto semelhante ao martelar de um prego no nosso canal auditivo.

O site Priberam descreve-a assim: “palavra esvaziada de sentido que se usa ou se repete no discurso, geralmente de forma inconsciente ou automática, como bordão linguístico”.

Exacto, “esvaziada de sentido”… Ninguém deixará de questionar as teorias evolucionistas da humanidade perante uma frase como esta: “Eu entrei tipo na sala, e tipo ficou toda a gente a olhar tipo para mim, e eu fiquei tipo nervosa, porque não sabia tipo o que fazer, foi tipo mesmo surreal, tás a ver?”.

Poderemos falar em preguiça ou desleixo mental, porque existem milhares de palavras, há dicionários à venda, livros para ler, mas será certamente mais fácil, ou mais prática, usar as mesmas palavras que toda a gente usa, tipificando toda uma geração.

Recuando um pouco no tempo, e estabelecendo comparações a níveis linguísticos, não deixamos de ficar maravilhados com o cuidado e tratamento que se davam às palavras para chegar a declarações de amor como esta: “E é amar-te, assim, perdidamente; é seres alma, e sangue e vida em mim; e dizê-lo cantando a toda a gente!”. Nos dias de hoje, algo indolente e entorpecido como “curto-te tótil, és tipo a pessoa que eu tipo mais amo e estou bué apaixonado por ti, porque és tipo top para mim” passa uma esponja sobre o processo criativo de Florbela Espanca.

O “tipo” é pandémico ao ponto de, tendo começado nas camadas mais jovens da sociedade, já ter contagiado as gerações mais velhas. Já não faltará muito para ouvirmos frases como estas no talho (“Quer o frango inteiro ou tipo partido?”), na reunião com a directora de turma do filho (“O Timóteo é assim tipo distraído e desleixado, tipo parece que nem está na aula”), ou no dentista (“Você tem aqui tipo cinco cáries e se não as tratar vai ter tipo muitas dores no futuro”).

Vendo esta temática pelo lado positivo, temos de nos sentir aliviados por não ter sido a geração do “tipo” a descrever momentos de elevada importância histórica no passado. Se fosse, ficaria algo como isto: “Este é tipo um pequeno passo para o homem, mas tipo um salto gigantesco para tipo a humanidade”; “Mr. Gorbachev, deite tipo abaixo este muro”; “Eu tenho tipo um sonho, de que os meus quatro filhos viverão tipo um dia numa nação onde não serão julgados tipo pela cor da sua pele, mas tipo pelo teor do seu carácter”; “Eu sou tipo um berlinense”; “Para Angola, tipo rapidamente e tipo em força”.

Vamos esperar que isto passe, tipo, depressa.