domingo, outubro 29, 2017

mark eitzel - o homem que canta com o coração nas mãos



tinha visto mark eitzel pela primeira vez em 2005, no santiago alquimista, em lisboa. na altura, os american music club tinham voltado a juntar-se e vieram apresentar o disco "love songs for patriots". para quem, como eu, gostava da banda desde o início dos anos 90, quando ouvi discos como "california", "mercury", "everclear" ou "san francisco", ouvi-los ao vivo foi uma experiência inesquecível, por ouvir músicas que endeusei durante anos, pela virtuosa voz de mark eitzel. lembro-me igualmente da sua timidez inicial, enquanto não sentiu o pulso ao público, soltando-se gradualmente à medida que o concerto ia avançando. fez sempre questão de fazer um pequeno intróito antes de cada música, sempre com uma humildade e uma honestidade desarmante. foi isso que me cativou nele, o facto de ser um "alguém" no sector musical (a rolling stone e o new musical express elegeram-no como "best songwriter" em 1991, o the guardian escreveu que ele era o "america's greatest living lyricist") e comportar-se em palco como se fosse um "zé ninguém", assumindo uma postura auto-depreciativa e jocosa em relação ao seu trabalho, com um sentido de humor bastante apurado. no final do concerto, sentou-se numa pequena mesa quadrada para assinar autógrafos e discos dos admiradores da banda ou da sua carreira a solo, que na altura já era bem profícua. nunca fui uma daquelas pessoas pedantes ou devotas a celebridades, mas no caso de eitzel abri uma excepção (a outra foi com mark kozelek, uns anos depois). lembro-me da sua afabilidade, simpatia e atenção (até chegou a pedir-me desculpa por alguém me ter passado à frente na fila), e quando chegou a minha vez fiz questão de lhe transmitir que tinha adorado o concerto e que era um admirador da banda há muitos anos. respondeu-me com um largo sorriso, disse "thanks, that means a lot" e estendeu-me a mão para o cumprimentar. enquanto me afastava, fiquei com a clara sensação de que tinha acabado de conhecer um ídolo.

doze anos depois, reencontrei-me com mark eitzel, agora em espinho. a expectativa, depois do que tinha acontecido em 2005 e dos excelentes trabalhos discográficos que tinha lançado entretanto, não poderia ser maior. de uma coisa tinha a certeza: o cantor iria estar em palco exactamente com a mesma postura e a mesma disposição, não seria pessoa para alterar fosse o que fosse na sua personalidade, para vender mais discos ou encher mais as salas de concertos. eitzel é puro, honesto, sincero demais para se "vender" dessa forma.
enquanto eu e a minha namorada esperávamos para entrar no auditório, vimos os músicos passar. eitzel ia no meio, de sapatilhas, com o seu inseparável boné e com a mão direita a segurar o casaco às costas, como um qualquer funcionário que ia pegar ao serviço às 21h30. pareceu-me sereno e, claro, tímido, sempre tímido, como que secretamente a desejar que ninguém o reconhecesse naquele instante, deixando-o seguir o seu caminho. mas, no palco, tudo iria ser diferente...

ao contrário do que costuma ser habitual neste país, o concerto começou a horas. os músicos, baterista, pianista e guitarrista, entraram em palco, abrindo caminho para mark eitzel, que surgiu com um copo de vinho tinto na mão e dois guardanapos, onde tinha apontado o alinhamento musical do concerto. acenando timidamente à plateia duas vezes, abriu com "if i had a hammer", do disco "mercury". sentindo-se um pouco mais à vontade, eitzel começou então o seu espectáculo paralelo, utilizando os intervalos entre as músicas para perorar sobre a américa de trump, o desrespeito pelas mulheres, a religião, a vida na estrada/digressão ou a forma correcta de pronunciar espinho (que saiu algo como "espinhú"), fazendo sempre um intróito antes de cada tema, para explicar quem o motivou, a quem o ia dedicar ou em que condição, financeira, sentimental ou emocional, estava na altura em que o escreveu. arrancou sempre fortes gargalhadas ao público, no seu jeito entre o trapalhão "bobo da corte" e o stand-up comedian mais corrosivo, sarcástico e acintoso. pelo meio, pediu, como é seu timbre, umas largas dezenas de "sorry's", algo que lhe está entranhado na personalidade.
ao mesmo tempo, as músicas iam desfilando, com o primeiro grande momento a acontecer com "what holds the world together", uma música que eitzel foi refinando ao longo dos anos em actuações ao vivo (como poderão aferir aqui). Seguiram-se-lhe "mission rock resort", "why won't you stay", "nothing and everything", "the last ten years", "all my love", in my role as professional singer and ham", "an answer", "the road", "apology for an accident" e "go where the love is". o copo de vinho tinto, entretanto, ia-se esvaziando aos poucos, até eitzel se ver obrigado a abrir uma garrafa de água, da qual só bebeu um gole.

quando os músicos saíram do palco, depois do alinhamento previsto, era mais do que óbvio que não tardariam a entrar de novo. o público estava conquistado e queria mais. alguém da produção fez questão de levar uma garrafa de vinho tinto e um copo ao palco. no regresso da banda, para o encore, eitzel agradeceu e voltou a encher o copo. foi neste momento que o público aproveitou para pedir músicas (e notou-se que era uma plateia conhecedora da obra dos american music club e de mark eitzel). alguém pediu "sick of food" e "last harbor". eu, cheio de coragem, pedi "western sky", tal como em aveiro tinha pedido a mark kozelek que cantasse a "somehow the wonder of life prevails". eitzel disse que ia cantar uma das músicas que o público pediu e eu, confiante, segredei à minha namorada que tinha a certeza que ele ia escolher a minha. o cantor começou o encore com "jesus hands", do disco "everclear", para depois dedicar à irmã a belíssima "blue and grey shirt", do disco "california". depois... "western sky"! eitzel aproveitou os primeiros versos da música para se despedir do público: "time for me to go away, i'll get a new name, i'll get a new face". no final do tema, saiu do palco. o público continuou a bater palmas, exigindo o seu regresso, mas, entretanto, as luzes da sala acenderam-se. resignado, o público começou a levantar-se para sair, de barriga bem cheia. mas, de repente, ainda com as luzes ligadas, surge mark eitzel, de gatas, a entrar no palco. gatinhando, passou por baixo do piano e chegou ao microfone. o público, num misto de perplexidade e alegria, voltou a sentar-se e as luzes voltaram a apagar-se, para o cantor interpretar mais um tema: "firefly", igualmente de "california", o disco dos american music club mais revisitado da noite.

era bem evidente o ar de satisfação do público quando se começou a juntar à saída do auditório, à espera dos músicos. mark eitzel, ainda com o copo de vinho tinto na mão, surgiu com a sua banda. interpelei-o quando passou por mim, soltando um "fantastic show!", ao que ele respondeu, sorrindo, "cheers, thanks man!". depois, foi esperar pela minha vez, para ele me assinar o bilhete do concerto. enquanto o fazia, atirei o que me veio à cabeça, referindo-lhe que já seguia a sua carreira desde o primeiro disco dos american music club, "restless stranger", de 1985, algo que ele soube reconhecer e valorizar. depois, ainda lhe disse, enquanto lhe apertava a mão, que ele estava melhor de disco para disco, recebendo um enorme sorriso e um sentido "my god, thank you very much!".
saímos de coração cheio: eu, porque voltei a encontrar-me com a pessoa que escreveu dezenas das minhas músicas preferidas e que admiro há três décadas; a minha namorada, porque tinha acabado de acrescentar, na sua lista de ídolos, o nome de mark eitzel!