quinta-feira, dezembro 17, 2020

Eu é que devia ser o Presidente!...



O poder das redes sociais exacerbou e levou ao extremo aquele velho adágio popular que nos diz que “quem não é visto não é lembrado”. Profissionais de vários sectores económicos, culturais ou de outra índole passavam, antes, toda uma vida na penumbra, satisfeitos por cumprirem as suas obrigações laborais, dentro da maior assiduidade possível, desde que isso significasse o respectivo pagamento do salário no final do mês. Actualmente, esse parece um conceito retrógrado e desfasado de sensatez ou bom senso, sobretudo porque agora há imensos canais de auto-promoção, como o Facebook, Instagram, Twitter, LinkedIn ou Youtube. De forma simples e imediata, qualquer um pode colocar-se em bicos de pés, causar sensação com as suas publicações, fotos ou vídeos, acicatar ódios ou paixões com as suas opiniões ou comentários, indignar apoiantes de um partido ou clube numa semana para, na outra a seguir, anunciar que os defende cegamente até à morte. Não é falta de escrúpulos ou incoerência; chama-se, simplesmente, redes sociais, onde é imperioso aparecer, alvitrar, reclamar, barafustar e maltratar, pelos vistos.

Habituados que estamos, há anos, ao facto de os assuntos mais debatidos e comentados nas redes sociais, ou chamados temas “virais”, virem naturalmente a integrar a agenda política, já nem estranhamos que até as personalidades menos suspeitas acabem, nem que seja por um dia, por estar na berlinda numa determinada altura. Por estes dias, temos Eduardo Cabrita, Rui Portugal ou Pedro Nuno Santos, mas já tivemos Joacine Katar Moreira, Ljubomir Stanisic, João Vaz (o actor do mítico anúncio da Telecel, que mudou de sexo), Rita Latas, Mamadou Ba, Victor Espadinha, Tino de Rans... Enfim, como advogava Andy Warhol, “no futuro, todos terão os seus quinze minutos de fama” (e eu ainda estou à espera dos meus…).

O que não é muito habitual é esse papel ir bater à porta de um jornalista, por maus motivos. Ou seja, não lançou um livro, como José Rodrigues dos Santos (que também foi muito falado na semana passada), Rodrigo Guedes de Carvalho ou Miguel Sousa Tavares, nem está indicado para o Prémio Pulitzer. Nada disso, apenas entrevistou, até agora, dois candidatos à presidência da República.

João Adelino Faria conseguiu algo que poucos políticos se podem gabar, atingir a consensualidade, anexando-lhe uma “virtude” que julgávamos inconcebível: colocar André Ventura no papel de vítima. O nosso “petit Trump” começou a entrevista com apenas 8% na mais recente sondagem para as presidenciais e aposto que duplicou esse valor apenas umas horas depois.

João Ferreira foi, no entanto, a primeira vítima do azedume de Faria, numa espécie de treino intensivo para enfrentar Ventura no dia seguinte. A sua postura no ringue de boxe foi idêntica, embora com menor ferocidade: pergunta, esperar cinco segundos, nova pergunta, esperar mais cinco segundos, voltar a fazer a primeira pergunta porque este nabo não respondeu da forma como eu queria, nova pergunta, referir dez vezes que o entrevistador sou eu, nova pergunta e ai dele que não responda com um mero “sim” ou “não”…

Tornou-se difícil, na primeira entrevista, perceber quem era, afinal, o candidato, tendo em conta a ânsia de protagonismo de Faria. No entanto, João Ferreira lá foi dizendo alguma coisa, embora nunca tenha, em 30 minutos, conseguido concluir uma frase. Na terça-feira, foi a vez de Ventura. Quem tinha visto a entrevista com Ferreira ficou, naturalmente, em pulgas para seguir esta, considerando o feitio truculento e insidioso do fundador do Chega. E as expectativas não saíram goradas. Faria foi implacável no ringue, mascarado de advogado de acusação, falou três vezes mais que Ventura, pareceu ainda mais candidato à presidência do que no dia anterior, tentou encostar várias vezes o entrevistado à parede do estúdio da RTP, falando por cima dele, dizendo apartes, fazendo a mesma pergunta quatro ou cinco vezes, espumando da boca e deitando fumo pelas orelhas. A certa altura, fez-me lembrar Jack Nicholson em “A Few Good Men”, quando soltou o seu célebre “you can’t handle the truth”.

É um país estranho este, em que até num programa humorístico, como o “Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, os convidados têm muito maior tempo de antena, e nem sequer são candidatos à presidência da República. João Adelino Faria não tem um programa de humor, nem um talk-show ou um programa de autor. Está ali para deixar os candidatos exporem as suas propostas e o seu programa eleitoral, para os eleitores poderem avaliar em casa e decidir em quem vão votar. Não está ali para “entalar” os entrevistados, mudando rapidamente de assunto quando este não responde como ele quer, castigando-os cortando o seu raciocínio a meio com nova pergunta.

Parece estar a nascer um novo tipo de jornalista vedeta, assomado por laivos de inimputabilidade e superioridade moral e intelectual, ao jeito de um Miguel Sousa Tavares ou Manuela Moura Guedes, mas num registo tuning, mais aerodinâmico, veloz e furioso. O mais estranho é que Faria nunca tinha apresentado este registo antes, nem na SIC, onde começou, nem na RTP, onde esse registo choca demasiado com a linha orientadora da estação, mais parecendo digno de uma TVI ou CMTV.

Em todo o caso, seja bom ou mau, o canal público é que ganha nas audiências, porque, agora, com o mediatismo conquistado nas redes sociais, ninguém vai querer perder as restantes entrevistas. Creio que todos ansiamos pelo frente a frente com Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa. Com ou sem luvas de boxe, não haverá Lexotans ou Valiums suficientes neste mundo para deter a impetuosidade indomável de Muhammad Ali Faria.

E se, antes, os políticos aproveitavam os programas humorísticos, como o “Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios”, por exemplo, para “limparem” a sua imagem e apresentarem-se como tipos porreiros e acessíveis, agora os candidatos presidenciais estão a contar os segundos para levarem uns sopapos e fazerem papéis de vítima nas entrevistas com João Adelino Faria. Qual Marinha Grande, qual carapuça…

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