segunda-feira, novembro 30, 2020

À espera de um Natal sem data


 Lembro-me bem daqueles natais com mesa farta, o cheiro a rabanadas e a filhós, o bulício na cozinha à volta do bacalhau, das batatas e das couves. De colocar os pratos na mesa para acomodar uma dezena de pessoas, de nunca haver espaço suficiente para colocar tudo aquilo que se confeccionou na hora, mais os queijos, o bolo-rei, o presunto e toda uma série de entradas. De tentar acondicionar os presentes debaixo da árvore de Natal, de avivar a lareira quando ela teimava desmaiar, de preparar o vinho tinto alentejano que se iria consumir na ceia, mais as bebidas para os mais novos, de tentar controlar o seu natural entusiasmo perante a perspectiva da abertura das prendas. Não me esqueço dos constantes “e agora, pai, já podemos abrir as prendas?” de meia em meia hora…

O Natal dos adultos era diferente, as prendas eram o que menos interessava, o mais importante era colocar a conversa em dia durante a ceia, comer e beber bem, não deixar faltar nada na mesa, ir substituindo as garrafas de vinho, as travessas com fritas, os frutos secos, as sobremesas e o bolo-rei (que, curiosamente, nunca tinha saída nessa noite, era mesmo o único elemento gastronómico que ficava por encetar).

Era um Natal de sorrisos rasgados, de ansiedade pelo que se ia comer e beber em ambiente festivo, pela alegria que iríamos proporcionar às crianças do nosso núcleo familiar com os presentes, recebendo em troca os mais cintilantes brilhos nos olhos, genuínos sorrisos de alegria, apertados abraços e sentidos beijos de agradecimento. O Natal também era isto, dar uma enorme alegria às crianças, mesmo que três dias depois os brinquedos que lhes demos estivessem já a um canto, avariados ou partidos.

Era inevitável chegar à conclusão de que, até ao nível das prendas de Natal, se tinha registado uma grande evolução em termos geracionais. Os meus pais nunca tiveram direito a elas, dadas as dificuldades com que se debateriam os meus avós. A geração seguinte, a minha, também se debateu com muitas dificuldades financeiras, mas os meus pais nunca deixaram passar esta época sem uma lembrança, por mais insignificante que fosse. E nós, como filhos, também sabíamos que não podíamos almejar muito alto. Na minha altura, não passavam nem 10% dos anúncios a brinquedos que hoje inundam os canais de televisão. Lembro-me dos carrinhos da Majorette e da Matchbox, das garagens com andares de estacionamento de carrinhos, com elevador, do cubo mágico, dos walkman e, mais tarde do Spectrum (o saudoso Spectrum…).

Mais recentemente, a geração dos meus filhos teve aquilo que nós, quando éramos da idade deles, queríamos ter, numa plêiade infindável de brinquedos, gadgets tecnológicos e acessórios. Em suma, tentamos sempre fazer mais do que os nossos pais fizeram, ou puderam fazer. Obviamente, também espero que o mesmo aconteça com os meus netos, quando chegar a altura de os meus filhos se debaterem com a lista de "exigências" no Natal. Seria bom sinal...

Lembro-me da azáfama dos dias anteriores à consoada, a lista de compras, as filas nas lojas e hipermercados, o trânsito, aquela prenda de última hora, do brandy para o cunhado… Mas, quando o relógio chegava às 20h00 do dia 24 de Dezembro era inevitável: olhava para a rua e não via ninguém. Depois do rebuliço dos dias anteriores, imperava o silêncio a essa hora, com as pessoas já em suas casas a celebrar o Natal em família. De repente, tudo fazia sentido, porque sabíamos que tinham valido a pena os minutos perdidos naquela fila interminável para embrulhar as prendas, ou os 20 minutos à procura de estacionamento para se ir a um centro comercial apinhado comprar aquela última prenda. Quando fechava as cortinas e me virava para a sala, onde já estavam os familiares mais próximos, a mesa enfeitada com muito empenho e afinco para que nada faltasse, os miúdos ansiosos por abrir as prendas, e onde havia sorrisos estampados nos rostos de toda a gente, acontecia... Natal! E esse era um sentimento interior tão forte, tão umbilicalmente ligado aos laços familiares, que em vez de estarmos a festejar um nascimento, estávamos nós próprios a nascer de novo, tal como acontece todos os anos na noite de 24 de Dezembro!

São memórias coleccionadas ao longo dos anos, em muitos natais, dos mais singelos aos mais faustosos. Mas, neste malfadado ano de 2020, creio que a única prenda que vamos receber no Natal é precisamente essa: a memória dos natais de outrora. Não sou contra as medidas restritivas em virtude da pandemia, antes pelo contrário. Sou a favor do recolher obrigatório e da proibição de circulação entre concelhos. Acredito que, à imagem da primeira vaga, apenas iremos inverter a evolução dos números com este tipo de medidas. Considero inacreditável ainda haver negacionistas nesta matéria quando todos verificamos o que sucedeu na primeira vaga e a forma como o país reagiu. Foram meses penosos, de muitos sacrifícios, mas conseguimos. Foram vários meses afastados da família mais directa, a evitar os almoços de domingo, a visita ao fim-de-semana para lhes aquecer o coração, a comemoração de aniversários, épocas festivas, etc.. Foi duro, mas havia um fundamento: não colocar em risco aqueles que mais amamos e consideramos.

A segunda vaga, que todos sabíamos que chegaria eventualmente, tem essa particularidade de abranger o período natalício. Os números sobem vertiginosamente desde o final de Outubro e, apesar de uma ligeira melhoria, vão entrar em Dezembro ainda bastante altos, superiores aos registados em toda a primeira vaga. O Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças já anunciou que as medidas em Portugal devem ser mantidas até ao final do ano. Os países que mais cedo encetaram medidas idênticas estão agora a colher os frutos dessa decisão. Em Inglaterra, as infecções caíram 30% após o confinamento de Novembro, mas, mesmo assim, Boris Johnson anunciou que as novas medidas restritivas só terminarão a 3 de Fevereiro do próximo ano. Espanha, Itália e França têm agora números mais baixos que Portugal, porque também eles “acordaram” mais cedo para o problema. Portugal está, agora, numa corrida contra o tempo e António Costa já referiu que os portugueses terão de se preparar para festejar o Natal de uma forma diferente, sob a égide de um estado de emergência.

Todos sabemos da importância do Natal para a economia nacional, todos adoramos a época natalícia, conviver com os nossos familiares em comunhão espiritual e fraternal, proporcionar sorrisos rasgados aos nossos filhos, sobrinhos, afilhados, mas será importante estabelecer prioridades e não nos esquecermos do que realmente está em causa. Nesta altura, não estamos a fazer sacrifícios, ou mais sacrifícios ainda, para salvar o Natal. Estamos a fazê-lo para salvar vidas humanas, incluindo as daqueles que mais amamos.

Será mais uma prova de resiliência e determinação, sobretudo numa época que convida ao reencontro familiar e ao estreitamento de laços sentimentais, mas é necessários sermos racionais em vez de sentimentais, pelo menos durante mais alguns meses. Estará iminente a vacinação e, se o processo correr conforme o esperado, daqui a algum tempo já poderemos colocar tudo isto para trás e voltar à normalidade. E então sim, voltaremos a colocar dezenas de lugares à mesa para um grande almoço de reencontro, seja em que data for, com dezenas de parabéns para cantar, folares da Páscoa e prendas de Natal. Acredito e anseio pela realização desse almoço, porque sei que vamos voltar a estar juntos, demore o que demorar.

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