é engraçado como o tempo se encarrega de nos esbofetear com pequenos nadas que julgávamos insignificantes e que, uns anos mais tarde, chocam de frente connosco, como autocarros desgovernados após uma inclinação de noventa graus.
a minha mãe trabalhava como uma escrava, das 8h00 às 19h00, sensivelmente, com apenas uma meia horita para comer alguma coisa, a fingir que era o almoço. a restauração é dos sectores mais duros e limitadores que existem, falo por experiência própria. o seu trabalho consistia em assegurar tudo o que houvesse para assegurar num cozinha de restaurante, que era, ao mesmo tempo, pensão, snack bar e café. ou seja, a todos os momentos do dia, tinha que existir sempre algo para "mata-buchar" (expressão popular que deriva do não menos famoso "mata-bicho", muito usado na zona onde a minha mãe trabalhava). portanto, era trabalho non-stop, desde preparar os almoços, passando pelos lanches e acabando nos jantares. não havia tempo para descansar.
eu teria uns 8, 9 anos quando me apercebi disto, da carga hercúlea que ela e o meu pai tinham às costas, para poderem providenciar aos filhos, a mim e à minha irmã, três anos mais nova, uma vida confortável, digna e sem privações.
mas a minha mãe tinha os seus "truques", ou melhor, as suas formas de transformar tudo aquilo por que ela tinha de passar todos os dias numa espécie de recompensa no final do dia. ela tinha necessidade de, chegada ao final de um daqueles dias, se regalar com algo que ela entendia ser um prémio pelo esforço realizado. acredito mesmo que seria a pensar nisso que a minha mãe dava tudo o que tinha, para chegar ao fim do dia e ter a sua recompensa.
pois bem, a recompensa da minha mãe era muito simples: todos os dias, a minha mãe, quando saía do trabalho, tinha de levar consigo algo para degustar quando já estivesse de pijama, confortável, na sua cama, no pleno gozo do seu descanso. no verão, era sempre um gelado, primeiro os pernas de paus, mais tarde os magnum de amêndoas. não falhava! no inverno, era um chocolate jubileu, que dividia por duas semanas. mas era esta a rotina: chegava a casa, tomava banho, vestia o pijama, metia-se na cama e... recompensa! assistia a isto todos os dias, entendia, mas nunca lhe dei muita importância.
eu trabalho muito menos que a minha mãe. facto! nem me atrevo a comparar sequer a carga de trabalho. porém, há dias em que gosto de me mimar, e hoje foi um deles.
depois de uma semana de seis dias seguidos de trabalho, de um sábado em que dividi o tempo de ócio/folga com trabalho, cheguei ao domingo. acordei cedo, tomei banho e pequeno-almoço. decidi que seria tempo de, finalmente, sair de casa. aceitei o meu próprio desafio. vesti roupa desportiva e meti-me à estrada. rua direita abaixo, ribeira, parque radial de santiago. muito tempo a caminhar, tirar fotos e, essencialmente, a respirar. fundo, bem fundo! e a pensar. muito. muito mesmo...
chegado a casa, preparei o almoço, porque sabia o que lá vinha.
almocei, compassadamente, lavei a louça, mudei de roupa e... meti-me ao trabalho. estive quase cinco horas a trabalhar. texto, mais texto, mais texto, e por aí adiante.
acabei de trabalhar... e fui trabalhar. tinha-me comprometido que passaria pelo jornal para ajudar no fecho de edição. e lá fui. mais duas horas. num dia de folga...
a recompensa, perguntam vocês? pois, eu sabia que teria de me mimar, para me compensar por ter desperdiçado duas folgas com trabalho e, vá, algum ócio insatisfatório.
saí do jornal, fui a uma superfície comercial e, basicamente, tratei de me satisfazer com pequenos nadas que eu sabia que me iriam saber bem quando, já no meu período de descanso, as pudesse usufruir com conforto, sossego e tempo.
as práticas passam de pais para filhos, como se fossem matéria de testamento. hoje senti-me como a minha mãe em 1980. e senti-me mesmo muito bem com isso!