domingo, outubro 24, 2021

um eterno lugar à mesa


outono. tempo de castanhas. como hoje as primeiras como deve ser, depois da tentativa de o fazer ontem em casa da minha mãe. vieram para a mesa 15 minutos antes do que deveriam e, como tal, não se conseguiam descascar. foi o único senão de um almoço principesco, um arroz de costelas (entrecosto) a correr, simplesmente divinal! o arroz sempre foi a especialidade dela, mas ultimamente tem refinado essa inclinação, confeccionando pratos como o citado, ou ainda arroz de marisco ou o sempre apreciado arroz de feijão. as castanhas... são outra história.

nas últimas vezes que a visitamos, sempre acompanhado pelos meus filhos, reparamos que a mesa está colocada para cinco pessoas. já era assim em setembro. habituados a respeitar os mesmos lugares à mesa durante anos, aquele lugar, imediatamente à minha direita, estava sempre colocado, mesmo quando o meu pai estava no hospital. em outubro, após a sua partida, o lugar continua a ser colocado na mesma. e ele bem teria gostado do almoço de ontem...

há várias semanas nos cuidados paliativos, sem que a ciência pudesse interceder pelo seu destino, partilhávamos todos, aquelas quatro pessoas à mesa, a mesma amargura. faltava ali alguém. e a pessoa que ali faltava não tardaria a sair das nossas vidas para sempre. a mesma pessoa a quem eu dediquei, no dia do pai, em 2007, este texto: 

https://nuvensdaalma.blogspot.com/2007/03/pai.html 

 

naquele mês de setembro, foram vários os sinais de alarme, em que nos apressamos a conduzir até ao hospital, sempre a pensar que tinha chegado o momento. ficávamos um pouco com ele e saímos de lá mais sossegados, convictos de que ele iria aguentar, pelo menos até aquele dia, 17 de outubro, em que os meus pais assinalariam 50 anos de casados.

a última vez que o vi, com vida, foi no dia 1 de outubro. fui com o meu filho pedro vê-lo ao hospital. pareceu-me bem, estava sem máscara de oxigénio, conseguimos falar com ele, perguntou ao meu filho quando é que ele casava. enchi-lhe a garrafa de água que estava vazia, depois de ter pedido uma de litro e meio à auxiliar. no final, disse algo como "não se prendam por mim, vão lá à vossa vida". e nós fomos. mas, três dias depois, ele foi à dele. e não, desta vez não chegámos ao hospital a tempo. soube por telefone, no IP3, a três quilómetros do hospital, que ele tinha partido...

por muito que estejamos preparados e mentalizados para a inevitabilidade da partida de um ente querido, nada nos prepara para ver esse ente querido sem vida. quando entrei no quarto, em cima da cama já não estava o meu pai, estava um corpo inerte, vazio, sem alma. sei bem que nunca irei esquecer a primeira imagem que se me deparou quando entrei no seu quarto, cama 10. já sabia que ele tinha partido e que não haveria mais nada a fazer, a não ser entregar-me à resignação absoluta. mas aquele choque de o ver sem vida, a forma como o deixaram em cima da cama, como toda a parafernália de máquinas e máscaras de oxigénio já tinha sido retirada, em tempo recorde, certamente, e restavam apenas os bens pessoais e o seu saco de roupa, foi uma agressão demasiado dura para encaixar. não tinha tido coragem de ver os meus avós sem vida quando eles partiram. tive-a agora. mas sei que vou ter aquela imagem bem gravada na minha cabeça até eu próprio partir.

os almoços em casa da minha mãe são, agora, diferentes. a minha mãe não é a mesma, nós não somos os mesmos. mas vamos procurando fazer a minha mãe rir, abrir aquele sorriso que tão bem a caracteriza. é uma mulher dilacerada pela dor, porque o seu amor de mais de 50 anos já não está ali connosco à mesa. já não está entre nós...

a vida continuará, certamente. alguém inventou as despedidas para momentos como estes. e eu tive a oportunidade de me despedir do meu pai, de lhe dizer o que sempre senti por ser seu filho, de lhe agradecer tudo o que ele fez por mim. foi sempre nele que confiei quando precisei de alguma coisa, foi o meu rochedo, a minha garantia de que, acontecesse o que acontecesse, estaria sempre bem, porque ele estaria lá para me ajudar. e esteve. esteve sempre! até morrer...

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