(artigo de opinião publicado no dia 6 de novembro de 2020)
No momento em que escrevo, Joe Biden está muito próximo de se tornar no 46º presidente dos Estados Unidos da América. Tem 253 votos eleitorais, contra 213 de Trump, e está próximo de atingir os 270 que bastarão para ser eleito. Nesta altura, estão muito perto de ser contabilizados os votos totais nos estados da Geórgia (16 votos eleitorais), Nevada (6), Pensilvânia (20) e Arizona (11). Ou seja, basta vencer na Pensilvânia (e está bem encaminhado para isso), mas Biden segue à frente nos quatro estados referidos.
Já ninguém duvidará que Joe Biden ganhou as eleições, embora o democrata tenha sempre recomendado calma nas suas intervenções pós-eleições, mantendo um registo ponderado e cauteloso. Numa postura diametralmente oposta está Donald Trump, que poucas horas depois de terem encerrado as urnas declarava vitória. Isto já seria grave, estando milhões e milhões de votos por contabilizar, mas o homem ainda foi mais longe: exigiu que se parasse a contagem de votos, alegando fraude eleitoral em virtude dos votos enviados por correio. Ou seja, Trump a ser Trump, no auge da sua prepotência, a declarar vitória antes que mais alguém o fizesse, naquela sua máxima, utilizada até à exaustão, de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade.
O ainda presidente americano está, agora, cada vez mais sozinho no seu registo quixotesco, acompanhado apenas pela sua família e por outro elemento ainda mais ridículo e cabotino do que ele, Rudolph Giuliani, como bem o provou a sequela de Borat. Os seus argumentos? “Isto é tudo ilegal, os votos não deveriam contar, é tudo uma fraude eleitoral e estão a roubar-nos a vitória”. Algo como isto. Provas, factos, documentação? Nada. Acusar de fraude eleitoral as eleições presidenciais na maior democracia do mundo é simplesmente vergonhoso para o país. E quem é o presidente desse país? Exactamente a mesma pessoa que faz a acusação. Onde está a honestidade que tanto apregoa, quando quer que se contem apenas os votos que lhe dão a vitória nas eleições?
Trump e o seu séquito estranham muito que Biden lidere, com larga vantagem, nos votos por correio, mas esquecem-se que o democrata insistiu nos últimos meses nessa forma de voto, instando os eleitores a votarem dessa forma, por ser mais prático e até mais seguro em virtude da pandemia. Trump renegou completamente esta modalidade, classificando-a de perigosa e que levaria a potencial fraude, preferindo comícios repletos de gente sem máscara, passeios de SUV à porta do hospital quando estava infetado com covid-19, proferir arrogantes e narcisistas frases sobre o seu notável desempenho como presidente e até, pasme-se, os seus atributos físicos, dançar ao som da música “YMCA” e repetir ad nauseam a frase “a vacina está quase pronta”. Está quase pronta desde Maio…
O próprio partido republicano começa já afastar-se de Trump e das suas declarações. O antigo senador republicano Rick Santorum, que ficou atrás de Mitt Romney na corrida à Casa Branca em 2012, manifestou-se “desapontado e chocado” ao ouvir as infundadas alegações de Trump, desejando que o partido republicano defenda a legitimidade das eleições. Do mesmo modo, o advogado Benjamin Ginsberg, representante do partido republicano em várias eleições presidenciais, expressou a sua estupefação perante os ataques “infundados e sem sustentação legal” de Trump, referindo que, desta forma, ele está a chamar incompetentes e desleais a todos os republicanos que estão a prestar serviço na contagem de votos. Acrescentou, hoje, na CNN, que não existem casos credíveis de fraude para Trump levar aos tribunais.
Também a comunicação social está farta, e já não é apenas a revista Time. Em resposta a mais um bombardeamento conspirativo em termos de declarações oficiais do ainda presidente na noite de ontem, vários canais de televisão, como os gigantes ABC, CBS e NBC, cortaram a emissão em directo da Casa Branca, alegando existirem “apenas palavras, não há verdade nenhuma e não vamos permitir que continue porque não é verdade o que ele diz”. A falta de justificação e de provas para o constante discurso carregado de alegações de manipulação do escrutínio e da existência de “votos falsos” levou a esta decisão.
Daniel Dale, repórter da CNN destacado para a Casa Branca, que desde 2016 escreve artigos intitulados “Fact check” sobre as declarações de Donald Trump, considerou que o ainda presidente americano proferiu ontem à noite o seu discurso mais desonesto de sempre. Entre outras declarações, Trump queixou-se que lhe estavam a roubar a reeleição, disse que os votos por correio são um sistema corrupto, referindo que venceria as eleições com os votos ditos “legais”, e ainda montou toda uma teoria de conspiração a favor dos democratas, diabolizando o partido de Biden. Ou seja, tudo foi válido para justificar a mais do que provável derrota.
Como prova cabal do seu impregnado mau perder, atente-se neste episódio de hoje, quando Trump começou a ver que ia perder o estado da Pensilvânia, nomeadamente pelo número de votos de Biden em Filadélfia, a maior cidade do estado. No Twitter, escreveu que “a Filadélfia tem um péssimo histórico de integridade eleitoral”. Vai estrebuchar, fechar-se na sala oval, fazer mais uma dezena de birras, mas terá mesmo de sair, depois de ter andado quatro anos a preparar os próximos quatro.
Os americanos e o mundo vão livrar-se, finalmente, do líder supremo da arrogância e da prepotência. Ganhou na América profunda, menos bem informada e mais inculta, a mesma que lhe granjeou a presidência há quatro anos, quando Hillary Clinton não provou ser a candidata que mais unia o partido democrata. Quatro anos de atropelos, asneiras, mentiras, de presidência pelo Twitter, fuga ao fisco, afirmações racistas, incitação à violência, desconsiderações ao resto do mundo, ao Acordo de Paris, à Organização Mundial de Saúde, culminando no inenarrável episódio da infecção por covid-19, teriam de merecer este resultado. E perdeu, segundo Trump, para “o pior candidato a presidente de sempre da história do país”, como o definiu no primeiro debate eleitoral. No entanto, Biden é o candidato que até hoje teve mais votos na história das eleições americanas, o único a passar a barreira dos 70 milhões.
O mundo livrou-se de um homem muito perigoso. Certamente que uma qualquer estação televisiva já o tem em mira para um novo reality show, onde o senhor pode voltar a mandar à sua vontade e dizer as barbaridades que lhe apetecer.
“You’re fired!”.
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