quarta-feira, setembro 23, 2020

a ensimesmar é que a gente se entende


 "ele é claramente uma mais-valia para nós, portanto vamos apostar nele".

mesmo sem o sabermos efectivamente, certamente que já fomos o visado numa frase desta estirpe.

a vida não se materializa apenas com certezas, como todos sabemos. a maior parte das vezes, ela desenvolve-se partindo meramente de pressupostos, do género "mas eu tinha a certeza que...". pois, não raras vezes a realidade apanha-nos desprevenidos e espeta-nos dois valentes tabefes na cara. 

mas sim, tenho de admitir, já devo ter sido, alguma vez, o alvo de uma frase como aquela que encima este despretensioso texto. a caminho dos 30 anos de vida profissional activa, iniciada em são pedro do sul em 1993, sou o melhor conhecedor dos meus defeitos, manias e falhas, mas também, ao mesmo tempo, a pessoa que mais depressa encontra em mim coerência, espinha dorsal e integridade.

falhei em toda a linha em muitos aspectos da minha vida profissional? sim, falhei.

se tivesse sido mais aberto e receptivo às personalidades mais distantes de mim teria tido mais oportunidades e melhor enquadramento social? sim, tenho a certeza.

esbanjei todas as oportunidades que me deram, as tais "apostas". fosse por embirração provocada por alguma pessoa, pela materialização de procedimentos que me custavam a executar, pela sensação de que me estava a vender, ou a vergar, a algo que não me servia (como se tivesse que comprar uns sapatos dois números abaixo do meu) ou por não me sentir bem na minha pele ou totalmente desenquadrado quando tinha que encarnar um papel, fazer uma encenação ou fingir fosse o que fosse.

tentei, ao longo destes 27 anos de vida profissional, ser o mais fiel àquilo que sou. não mendiguei amizades, não bajulei, não "comprei" momentos para alimentar o meu ego, não pactuei com invejas, falsidades e injustiças, não me meti em lutas alheias, dei o espaço que tinha de dar às pessoas com quem lidei diariamente, sem nada forçar, sem me "vender" como falso amigo ou messias de pacotilha.

fui eu mesmo, não encenei nada! nunca tive essa necessidade.

só consigo ser eu mesmo, não tenho veleidade de pretender ser algo que não sou.

prefiro isso a uma apresentação "milli vanilli", a um play-back, a um "mergulho" forjado dentro da grande área para provocar um penálti.

claro que, nesta altura, podem questionar: mas valeu a pena tudo isso?

não, claro que não! as pessoas, ou a grande maioria delas, não pretende nada disto. quer sorrisos amarelos, quer falsas atenções, quer pancadinhas nas costas, quer afagos na alma, mesmo que, ao mesmo tempo em que estes estão a ser efectuados, estejamos a ver no telemóvel o estado do tempo para o resto da semana ou os resultados da primeira jornada do campeonato grego.

e o que é que acontece quando não és assim? exacto, és colocado de lado e és rotulado com epítetos como "arrogante", "altivo", "imperial", "antipático" e "misantropo" (curiosamente, ainda não tive a oportunidade de conhecer némesis que soubessem o significado desta palavra).

de nada importa aquilo que produzes, a forma como o produzes, a pesquisa e o trabalho prévio para o produzir, todo o cuidado que tens a materializar o produto, ao nível da ortografia, pontuação e gramática, ou a apresentação que dás ao teu produto. se continuares a evidenciar todos aqueles epítetos do parágrafo anterior, tudo aquilo que produzes é... zero! mesmo que seja material digno de um pulitzer.

concluindo (ou em jeito de recomendação a todos aqueles que, tal como eu em 1993, estejam a iniciar uma carreira profissional):

se não quiserem acabar como eu, um quarentão rezingão, frustrado e totalmente inadequado em quase todos os aspectos da chamada vida social, façam exactamente o oposto daquilo que eu fiz. ou seja, sorriso amarelo estampado no rosto o dia inteiro (ao ponto de provocar lesões musculares na face) para evidenciar satisfação por qualquer piada, chiste ou anedota que é verbalizada, dinheiro sempre pronto para pagar qualquer despesa no café ou na tasca, disponibilidade para aceitar qualquer convite social proveniente do teu local de trabalho (baptizados, comunhões, despedidas de solteiro, jogo de futebol entre solteiros e casados, torneio de sueca, porco no espeto, etc.), comprar toda e qualquer rifa escolar vendida por um colega, ouvir sem um esgar de sacrifício ou dor qualquer história que alguém decide contar, estar disponível para dar umas gargalhadas valentes mesmo que não tenha qualquer piada aquilo que ouves (porque faz bem ao ego de alguém), e abdicar de tudo aquilo que tens para fazer, lá está, a tal produção, para ouvires os teus colegas falar das suas casas, animais de estimação, jardins, hortas, férias, fins de semana, etc..

independentemente do que produzas, independentemente da qualidade com que o fazes, independentemente da rentabilidade que apresentas perante a tua empresa, estes são os condimentos para uma vida profissional duradoura. porque, lá está, aos olhos de muita gente (e estamos nós no século XXI...), o mais importante não é aquilo que fazes, é aquilo que as pessoas pensam que tu és. e quando elas se sentem confortáveis com isso, o mundo é a tua ostra.

quem não tiver isto, resta-lhe continuar a seguir a estrada, até encontrar algo minimamente parecido com aquilo que procura. o tempo é cada vez mais escasso, mas há que manter o pensamento positivo.

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