confesso que continuo sem saber qual é o meu papel nesta grande produção chamada
"vida". em virtude das minhas limitações, talvez não ouse almejar mais do que um
papel secundário, daqueles sem direito sequer a uma linha no filme. é mais do
que evidente, trinta e nove anos depois, que o filme está a ser rodado noutro
lado qualquer, que a acção nunca há-de passar por estes lados. no máximo,
aparecerei como aquele que é quase atropelado pelo autocarro no "speed", ou um
dos escoceses que morrem ao lado de william wallace em "braveheart". nem terei
direito ao meu dramático "freeedooom". limitar-me-ia a levar com uma seta no
peito e a tombar, tal como centenas dos meus irmãos escoceses, nessa luta pela
independência do jugo britânico.
há igualmente uma crescente preocupação em
relação ao género do filme. comédia ou drama? porque se há alturas em que me
sinto um jim carrey, em filmes como "yes" ou "ace ventura", há outras em que
visto as roupas de um jack baker, em "the fabulous baker boys", ou de um miles
raymond, em "sideways". ou seja, se eu fosse escolhido como actor principal
desta grande produção, hesitaria bastante quando tivesse que escolher um dos
registos. ainda não cheguei a nenhuma conclusão neste domínio. a minha vida
daria uma comédia ou um drama? e, havendo um produtor completamente lunático
disposto a levar a minha vida ao grande ecrã, quem entraria no meu filme? que
momentos da minha vida seriam realçados? e teria cenas de acção frenéticas ou,
pelo menos, uma perseguição de carro? um affair? um "love interest"? um
homicídio passional? um iceberg? vampiros? um vírus mortal? provavelmente,
teriam que incluir tudo isto no filme, para ficar minimamente apetecível gastar seis euros para o ver no cinema. se o filme fosse apenas baseado na minha vida
seria um autêntico soporífero. seria uma espécie de "groundhog day", o filme em
que bill murray é obrigado a reviver o mesmo dia... todos os dias, encontrando
sempre as mesmas pessoas e passando constantemente pelas mesmas situações, mas
com muito menos piada, obviamente. resultaria um "groundhog day" como se fosse
realizado por manoel de oliveira, o que, ainda por cima, significaria que eu
teria que arranjar um papel para o luís miguel cintra e para o ricardo trêpa
(como se já não houvesse dezenas de personagens aborrecidas no "meu"
filme).
como personagem principal do filme (do tal lunático e, sejamos
francos, demente produtor), não cativaria nem apelaria a ninguém (provavelmente
só aquela franja de espectadores que considera o filme "branca de neve", de joão
césar monteiro, o melhor filme de sempre), tanto a nível psicológico, como
físico. daí que, para tornar o filme um pouco mais interessante, tal como fiz há
anos e na medida em que estamos a fazer cócegas à imaginação neste exercício
especulativo que chega a roçar a pura imbecilidade, me permitam que vá buscar os
seguintes atributos a algumas personagens masculinas:
- a eloquência e a destreza de gerard
depardieu em "cyrano de bergerac"
- os dotes artísticos e o virtuosismo de
geophrey rush em "shine"
- a inteligência e o discernimento de morgan freeman
em "seven"
- ser sedutor como daniel day lewis em "a idade da inocência"
-
a "pinta" do jeff bridges em "os fabulosos irmãos baker"
- o sex appeal de
george clooney em "out of sight"
- o sentido de humor de woody allen em
"annie hall"
- o charme natural de hugh grant em "notting hill"
- o
cavalheirismo de clint eastwood em "as pontes de madison county"
- a paixão
profissional de robin williams em "o clube dos poetas mortos"
- o carácter
meticuloso de tim robbins em "shawshank redemption"
- o optimismo e altruísmo
de roberto benigni em "a vida é bela"
- a integridade de paul giamatti em
"sideways".
com tudo isto, nem o manoel de oliveira conseguiria estragar o
filme da minha vida. a única coisa que o poderia fazer seria... o argumento.
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