tenho tempo agora. talvez aproveite para escrever alguma coisa. sinto saudades
de escrever, aquele escrever entusiasmado, em que uma palavra puxa outra e essa
uma outra, encaixando tudo no final. escrever ao mesmo ritmo do pensamento, da
formulação das ideias, do desenvolvimento de um tema.
neil hannon, líder dos
divine comedy, disse em tempos que os seus melhores trabalhos foram compostos
quando vivia grandes desgostos amorosos. nunca me esqueci dessa sua frase,
porque imagino que, se fosse escritor de canções, seria exactamente assim. o
problema é que quando tinha desgostos amorosos... não havia internet ainda.
limitava-me a escrever o nome da pessoa amada nos meus cadernos e livros
escolares, a fazer aqueles corações com uma seta a atravessá-los, a escrever
cartas que depois, por timidez, nunca eram entregues...
com a internet, é
tudo muito mais simples. hoje consegue-se encontrar toda a gente, seja no
facebook, no hi5, no netlog, no my space, sem sair do conforto do lar. depois de
encontrar a pessoa pretendida, é só teclar... e nem é preciso saber escrever.
agora, pelos vistos, faz-se tudo com parêntesis, pontos e vírgula e dois pontos
a imitar expressões faciais. aventuras como a que eu tive, aos 13/14 anos, de
andar cerca de 10 quilómetros de bicicleta para tentar encontrar uma rapariga,
de quem só conhecia o nome e a aldeia onde morava, tornaram-se obsoletas. tal
como escrever cartas, conquistar alguém pelo poder das palavras, qual cyrano de
bergerac, mostrar determinação e empenho na conquista da pessoa amada.
as
palavras têm cada vez menos significado, perdendo impacto e valor. aliás, as
palavras têm sido sistematicamente amputadas ao longo dos anos, seja na
internet, nos telemóveis ou até mesmo no nosso dia-a-dia. se a palavra é
competitividade, por exemplo, as pessoas dizem "competividade", para ser mais
rápido; se uma pessoa quer saber se a outra está bem, não pergunta "estás bem?",
diz somente "tá-se?". depois há os "tb", os "pq", os "qq", etc..
em suma,
escrever é uma valente maçada para a maior parte das pessoas, especialmente
escrever correctamente. manter um "diálogo" virtual na internet com alguém,
depois de conseguir facilmente o seu mail ou a página de facebook, é agora uma
tarefa ao alcance de qualquer um, mesmo que não tenha a mínima noção da língua
portuguesa, escrita ou falada. bastam uns quantos "lol", umas carinhas com
pontos e vírgula e parêntesis e está o assunto tratado. ainda me lembro, posso
não ter grandes qualidades mas reconheço que tenho uma boa memória, de a minha
primeira namorada me ter apontado um erro ortográfico na primeira carta que lhe
escrevi (sim, foi apenas um!...), quando tinha 14 anos. escrevi "ei-de" em vez
de "hei-de". duvido que hoje exista essa preocupação de corrigir, de alertar
alguém para um erro ortográfico ou verbal. quantos "ouvistes", "fizestes",
"quaisqueres" ou "há-dem" uma pessoa ouve por dia? dezenas? centenas? até fere
os ouvidos.
este cenário, infelizmente, com a profusão de telemóveis, a
utilização em massa da internet, as redes sociais, messenger, etc., tem clara
tendência para piorar. o lema universal parece ser "abreviar, facilitar e
despachar". nos dias de hoje, aquele rapaz da bicicleta e das cartas de amor não
teria a mínima hipótese...
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