capítulo XI
com o andré de regresso ao trabalho na repartição, e tendo em conta o nosso corte de relações, as minhas férias não poderiam ter surgido na melhor altura. duas semanas que eu aproveitei para tentar encontrar um apartamento, não para ir para a praia com o marco ou visitar o meu irmão em tomar. a minha ideia era encontrar um t1 com uma renda similar, ou mais baixa, do que a que pagava ao andré, porque o panorama financeiro começava a ficar negro. comecei por comprar vários jornais com classificados, mas fosse pelo preço ou pela localização, nada me entusiasmava. comecei então a circular pelas zonas que me interessavam, as que ficassem perto do emprego, à procura de placas a dizer "aluga-se", anotando números de telemóvel e mesmo visitando alguns apartamentos. mas nada me agradava. alguns tinham um cheiro nauseabundo, outros precisavam de obras de restauro de fundo para que fosse possível lá habitar um ser humano, outros ainda eram alugados por gente que não me inspirava a menor confiança. e assim se perderam vários dias, com o prazo que o andré me deu para sair do apartamento dele quase a expirar. em último caso, sabia que poderia passar uns dias numa pensão ou residência. o ambiente nos derradeiros dias em casa do andré foi muito tenso. nunca havia diálogo nos poucos momentos em que partilhávamos o mesmo espaço. foi por um vendedor imobiliário que fiquei a saber que o andré ia vender aquele apartamento. foi lá a casa, quando o andré estava a trabalhar, para colocar aquelas famosas placas de imobiliária na varanda. obviamente, e aproveitando um muito desconfortável silêncio, aproveitei para lhe perguntar por apartamentos para alugar. o vendedor, nélson ferreira, muito prestável, sugeriu que o acompanhasse à imobiliária para melhor consultar a oferta existente. com o dia inteiro à minha frente, sem compromisso nenhum agendado, como um verdadeiro dia de férias devia ser, resolvi aceitar o convite e a boleia do vendedor. vinte minutos de condução tresloucada depois, consegui suspirar, finalmente, de alívio, no preciso momento em que o homem puxou o travão de mão depois de estacionar. quando entramos na imobiliária, extremamente bem decorada e com um visual moderno, o nélson viu que tinha clientes à sua espera para ir mostrar um apartamento em carnaxide e "transferiu-me" para outro vendedor. no caso, uma vendedora. quando entramos no gabinete dela, senti imediatamente que a conhecia de algum lado. a confirmação surgiu com as apresentações. "jorge oliveira, esta é a cláudia rebelo". de repente, parece que recuei vinte anos no tempo. à minha frente estava aquela que foi a minha primeira grande paixão, por quem eu chorei "baba e ranho" quando ela decidiu romper os laços sentimentais que tinhamos criado em dois anos de namoro porque queria "ver o mundo". ao fim de dois anos comigo sentiu-se "presa e sufocada", foi a justificação que me deu. parte do meu coração, aquela parte que tem a capacidade de amar loucamente apenas uma vez na vida, escureceu naquele dia e nunca mais viu a cor do sol. a cláudia não me reconheceu, no que constituiu mais uma facada simbólica nas minhas costas, limitando-se a tratar-me cordialmente como a um qualquer anónimo cliente. teria eu mudado assim tanto visualmente nos últimos 20 anos, ao ponto de ela não me reconhecer? apesar de algo incomodado, consegui manter com ela uma conversa normal, tendo-me ela apontado várias hipóteses de aluguer nas áreas pretendidas. depois de lhe explicar a situação em que me encontrava, com necessidade de me mudar o mais rapidamente possível, a cláudia prontificou-se a ir comigo ver alguns apartamentos disponíveis. mal entramos no carro, e depois de eu rezar mentalmente a todos os santos para que ela conduzisse melhor que o nélson, ela olhou-me directamente nos olhos e disse:
- jorge oliveira, meu deus, há quanto tempo não te via?!...
- caramba, estava a ver que não me tinhas reconhecido.
- claro que reconheci. mal tu entraste no gabinete. mas no escritório não quis arriscar uma conversa de índole pessoal. lá dentro há muitos olhos e ouvidos, sempre à espreita de uma oportunidade para nos lixarem.
- eu compreendo, mas deixaste-me em completa agonia e angústia durante quinze minutos. sei que não nos víamos há já vinte anos mas, mesmo assim, o facto de não me reconheceres menosprezava ainda mais o que vivemos na altura.
- calma jorge, foi apenas uma questão de ética profissional. já tomaste café? vamos sentar-nos, tomar um cafezinho e colocar a conversa em dia. pode ser?
- claro que pode. quantos dias disponíveis tens? sempre são vinte anos...
para minha sorte e alívio, a cláudia conduzia suavemente e sem pressas. senti-me muito relaxado e confortável, muito ajudando o cd da sade que ela tinha colocado antes de iniciarmos a pequena viagem até a um café das docas. pelo caminho não me saía da cabeça a expressão "win some, lose some", porque o timing da reentrada da cláudia na minha vida não poderia ter sido melhor, agora que saía dela o andré.
na esplanada do café, vazia àquela hora do dia, onze da manhã, pudemos conversar e escalpelizar os diferentes rumos de vida que escolhemos. ela ainda era solteira, nem nunca esteve sequer perto de casar, embora coleccionasse relacionamentos amorosos. era extremamente fácil imaginar que não faltavam homens na vida da cláudia, ela continuava a exibir uma irresistível sensualidade aos 39 anos, bem expressa nos seus longos cabelos pretos, lábios carnudos, decote proeminente e nas fabulosas pernas que a saia ligeiramente acima dos joelhos deixava descobrir. eu, de simples t'shirt dos rolling stones, calças de ganga e sapatos de vela, sentia-me totalmente deslocado daquele "quadro". o mesmo deve ter pensado o empregado de mesa, que não se coibiu de "admirar" a cláudia como se ela não estivesse acompanhada. quando a longa passagem pelos últimos vinte anos desembocou na actualidade, a cláudia foi directa ao assunto que ambos estávamos a tentar evitar desde o início:
- então, ainda achas que nós teríamos tido futuro juntos?
- acho, eu entendo que foste tu que tiveste medo de ser feliz comigo.
- não digas isso. as coisas resultaram naqueles dois anos porque apenas estávamos juntos uns momentos, não mais do que isso. éramos apenas namorados. quando estivéssemos sempre juntos, de manhã à noite, ficaríamos sem assunto, entediados. e eu tive medo que isso acontecesse connosco, porque não sei se sobreviveríamos a isso, a essa pressão. preferi, dessa forma, partir e ficar apenas com o melhor de ti, com as boas recordações.
- mas porque é que nunca tentámos dar esse passo? até poderia ter resultado...
- porque, com o tempo, fui aprendendo a dar valor à minha liberdade, ao meu espaço, sem ninguém a controlar o que faço com o meu tempo, a perguntar-me o que estou a pensar, a "escravizar-me" emocionalmente. como te disse na altura, no final sentia-me sufocada por ti. tu querias constantes declarações e provas de amor, parecia que tinha que te provar todos os dias que te amava e, mesmo que o conseguisse, tudo voltava ao início no dia seguinte. com tudo isto, senti que a nossa relação só poderia piorar se tentássemos algo mais sério.
- no entanto, não posso deixar de sentir uma certa amargura por nunca me teres considerado sequer para outro tipo de papel na tua vida. nem de amigo. desapareceste completamente. fiquei completamente destroçado emocionalmente.
- mas acredita que foi melhor assim. nós acabaríamos por nos transformar na kathleen turner e no michael douglas do filme "a guerra das rosas". se nos reencontrássemos vinte anos depois, como está a acontecer agora, virávamos a cara um ao outro. assim, ficou uma bonita história de amor, que acabou antes de chegar ao intolerável.
- de certa forma, e vais-me desculpar a frontalidade, até fico contente por nunca te teres casado. acho que ficaria de rastos se soubesse que tinhas encontrado alguém com os argumentos que eu não tive para te levar a assumir esse passo.
- mas tu encontraste. casaste poucos anos depois.
- cláudia, eu já tinha encontrado essa pessoa. eras tu. a sónia fazia parte do nosso grupo de amigos e apoiou-me bastante quando tudo terminou entre nós, mas o nosso casamento baseou-se nos pressupostos errados, como se veio a comprovar. no final já só havia respeito e consideração um pelo outro, nada de paixão ou mesmo amor. daí que me sinta fortemente tentado a dar-te toda a razão do mundo. compreendo agora que a nossa relação talvez não pudesse ter ido mais longe. as primeiras paixões são sempre as mais complicadas. ama-se louca e entusiasmadamente e sentimo-nos eufóricos e apaixonados, mas, por outro lado, não há ainda qualquer experiência anterior onde se vá beber conhecimento para evitar os erros que se cometem naturalmente. é nas primeiras paixões que se cometem os maiores erros. ciúmes, possessão, egoísmo exacerbado. começo a pensar que te deveria ter conhecido uns 10 anos mais tarde, quando estivesse realmente preparado para uma relação.
- o teu problema foi quereres tudo rapidamente. ainda eu não me sentia verdadeiramente a tua namorada, já estavas tu a pensar em casamento, no passo seguinte. tu não chegavas a viver na total plenitude o momento em que estavas, porque estavas sempre a pensar no próximo. deste-me excelentes momentos, que eu vou recordar para sempre, mas sentia que te esforçavas demais para me agradar e eu queria que tudo acontecesse de forma natural, com mais espontaneidade e menos trabalho de preparação nos bastidores. e, como cereja em cima do bolo, eras ciumento como tudo.
- acho que naquela altura queríamos coisas diferentes. eu queria a vida familiar, a casinha nos arredores, os filhos, o carro familiar; tu querias liberdade para ver o mundo, sem amarras emocionais, sem impedimentos de qualquer ordem. basicamente, ainda não estávamos preparados um para o outro.
- também. nós desenhávamos futuros diferentes. juntos, acabaríamos por atrapalhar o desenho um do outro e, provavelmente, acabaríamos por apagá-lo.
- e eu nunca tive grande jeito para desenhar...
- bem, jorge, vamos lá então arranjar-te um apartamento...
E esse apartamento vai ter já quartos perfeitamente montados, com cama e tudo o resto?!
ResponderEliminarTu vê lá o que vais pôr estes dois a fazer...