capítulo X
"se algum dia te apetecer fugir, foge comigo!". escrevi isto num papel um dia, num café qualquer, enquanto esperava pela bica. guardei-o religiosamente na carteira, com o intuito de o poder oferecer à sofia. não sei de que forma ou quando, ou mesmo se algum dia teria coragem para o fazer, mas o simples facto de ter escrito aquelas palavras aliava-me a dor de não a ver. tinha passado um mês desde a última vez que a vi e a incerteza de um novo encontro dilacerava-me. nos momentos de solidão, como aqueles que esgotava no café ao fim de almoço, antes de voltar ao purgatório do emprego, fazia um exame a mim mesmo, a tudo o que se estava a passar na minha vida. o último ano tinha sido terrível: a morte do meu pai, o divórcio, o afastamento do marco da minha vida, o mau ambiente cada vez mais intolerável no emprego, o nascimento de uma vida nocturna questionável e de uma vertente boémia que pouco tinha a ver com o jorge oliveira que o meu pai conheceu em vida. a solidão corroía-me interiormente, obrigando-me a procurar companhia, mesmo que fosse nas ruas e a pagar. obviamente não me sentia bem com aquela situação mas já era mais forte do que eu. passei a compreender melhor os toxicodependentes, os viciados no jogo e no álcool ao entrar no mesmo mundo, ao percorrer os mesmos caminhos. nesses exames de consciência via perfeitamente a face recriminatória do meu pai e sentia-me envergonhado daquilo em que me tinha tornado, no rumo que a minha vida estava a tomar. sentia-me um adolescente, a dividir a casa com um colega de curso e a aproveitar as noites para a diversão, sem prestar contas a ninguém. mas mesmo que me sentisse mal com tudo aquilo, nunca tinha força à noite para combater este vício. durante as férias do andré, devo ter trazido para casa umas dez prostitutas. na noite anterior à chegada do andré fui ainda mais longe, disse à natasha para trazer uma amiga também. com o regresso do andré, eu sabia que teria finalmente um motivo forte para deixar aquele estilo de vida, por isso aquele ménage a trois foi uma espécie de despedida e, ao mesmo tempo, a realização de um fétiche sexual antigo. há muitos anos, ainda antes do nascimento do marco, eu e a sónia tinhamos uma amiga, bem sensual e insinuante, que um dia nos confessou, numa noite de copos, que gostaria de experimentar essa fantasia connosco. durante uns bons tempos, a ideia não me saiu da cabeça, mas nunca comentei esse assunto com a sónia, com receio de represálias, porque a leitura que ela faria seria bastante simples: eu queria fazer amor com outra mulher. apenas isso.
mas aquela que seria uma noite idealizada no paraíso acabou por se tornar um pesadelo, que meteu desacatos no prédio, barulho a altas horas da madrugada, vizinhos a bater à porta e a chamar a polícia. tudo porque o sergei, o "chulo" ucraniano da natasha, teve um ataque de ciúmes quando soube que ela tinha um cliente e não descansou enquanto não arrancou a minha morada a uma das outras prostitutas. quando lá chegou fez um escarcéu de todo o tamanho, batendo à porta, chamando por ela aos berros. como seria natural, os meus vizinhos acordaram para virem ver o que se passava. quando abri a porta ao sergei, ele entrou pela casa dentro e trouxe a natasha pelo braço, deixando ficar a sandy. perante o meu ar de perplexidade, o sergei e a natasha pararam à porta do meu apartamento e começaram a beijar-se, abraçando-se de seguida. antes de saírem do prédio, ainda com alguns vizinhos a vociferarem, a natasha explicou-me que eles tinham tido uma discussão no dia anterior, porque ela tinha acabado de descobrir que estava grávida dele, mas o sergei queria que ela abortasse, contra a vontade dela, para poder continuar a trabalhar. mas, nessa noite, o instinto protector e o receio de a perder falou mais alto e o sergei foi a correr dizer-lhe que queria criar aquele filho com ela. desejei-lhes felicidades e despedi-me deles, tentando posteriormente explicar a alguns vizinhos que se tratavam de uns amigos meus. quando a polícia chegou já estava o prédio em sossego. o pior foi no dia seguinte, quando o andré regressou. tomando conhecimento da história da noite anterior, bem como do constante "tráfego" nocturno no seu apartamento nas últimas duas semanas, o andré confrontou-me directamente. obviamente, contei-lhe a verdade. a tensão era grande naquela altura e eu, embora mais velho do que ele dez anos, sentia-me um rapazito prestes a levar um valente sermão do pai. depois de me explicar que se sentia humilhado com tudo aquilo e que nunca mais iria conseguir andar de cabeça levantada no prédio, por estarem a associar o nome dele a prostituição e proxenetismo, o andré disse-me que tinha uma semana para sair lá de casa. embora considerando que a sua decisão tinha sido demasiadamente ríspida, compreendi a sua posição e acatei a "ordem de despejo".
no dia seguinte, no café, enquanto folheava jornais à procura de apartamentos para alugar, senti-me verdadeiramente sozinho, abandonado à minha sorte. tinha perdido um amigo, decepcionado mais uma pessoa e não tinha uma única voz disponível para me reconfortar. quando abri a carteira, à procura de moedas para pagar o café, vi o bilhete que tinha guardado para entregar à sofia. naquela altura, quem queria fugir era eu. fugir de mim...
Sim, senhora, já cá faltava...toca a continuar!
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