domingo, julho 06, 2008

capítulo I e II

capítulo I
lá fora chovia torrencialmente. o som da chuva aumentava gradualmente e tornava-se quase incómodo. liguei a televisão e levantei-me da cama. corri as cortinas para ver a chuva a cair, sempre me senti bem ao fazê-lo. sossegava-me. relaxava-me. da televisão ecoavam sons familiares de um qualquer canal de música. desliguei-a imediatamente. naquele momento nada queria sentir, especialmente o que certas músicas me fazem sentir. apenas queria ouvir o som da chuva. apenas isso. encaminhei-me para a casa de banho, apanhando pelo caminho duas almofadas, que voltei a colocar em cima da cama, e um par de meia que preguiçosamente deixei ficar pelo tapete. no espelho da minúscula casa de banho encontrei um rosto desiludido e enrugado, para o qual não olhei mais do que cinco segundos. lavei a cara, como que a querer transfigurar-me e purificar-me, como se a água fosse capaz de me arrancar do rosto os traços de uma vergonha galopante. passei várias vezes a água pela cara. cada vez com mais intensidade. a força com que as minhas mãos batiam na minha face provocava-me uma sensação de castigo corporal auto-infligido, que, no meu subconsciente, sabia que merecia. não sequei a cara, a água escorreu-me pelo peito, eliminando dele pequenas partículas de um perfume tentador que me ficou entranhado na pele e com o qual não estava a conseguir lidar da melhor forma. o cheiro que, na noite passada, tanto me inebriou e seduziu, agora provocava-me náuseas e eu queria ver-me livre dele o mais rapidamente possível. olhei, impotente, para o espelho outra vez. foi a isto que me reduzi? um patético homem de 45 anos, numa minúscula casa de banho, a travar uma luta interior por causa de um perfume? um acumular de frustrações sucessivas tinha-me colocado ali, naquele dia, às onze horas da manhã, naquela pensão rasca, num chuvoso e frio dia de novembro. voltei para o quarto. ela ainda dormia, toda nua e destapada, apesar do frio. ao olhar para ela, senti apenas desprezo. por ela e por mim. o quarto tresandava ao perfume dela. abri a janela, devagarinho, porque não a queria acordar. estabelecer um diálogo com ela seria tão confortável como abraçar uma dúzia de facas afiadas. continuava a chover torrencialmente. e eu sempre gostei de andar à chuva. naquele preciso momento, era o que eu mais queria na vida. vesti-me rapidamente, com uma emergente vontade de sair dali. a consulta à minha carteira apenas confirmou as minhas piores expectativas: não tinha dinheiro para pagar o quarto, porque já tinha pago à prostituta. como é que eu iria resolver o assunto? não podia sair pela recepção, porque me obrigariam a pagar. podia sempre tentar reaver o dinheiro, mas tinha receio de ser apanhado. olhei para a janela, que ainda estava aberta, e observei quais eram as minhas hipóteses de fuga. estava num 1º andar e, à primeira vista, não me pareceu muito difícil saltar para a varanda da casa em frente, para depois descer umas escadas metálicas até à rua, por onde não passava ninguém há largos minutos. benditas as vielas da baixa de coimbra, em que as casas estão praticamente umas em cima das outras. quando me preparava para saltar ouço: "mas para onde é que você pensa que vai?". o seu sotaque brasileiro ainda ecoava na minha cabeça quando me atirei ao encontro das grades, falhando a aterragem na varanda. os meus 45 anos e a falta de qualquer actividade desportiva nos últimos 10 anos ficaram bem reflectidos na minha perna esquerda aquando da queda. mesmo assim, consegui deslizar até às escadas metálicas e colocar-me em fuga, debaixo de um chinfrim abrasileirado e de uma panóplia de insultos e ameaças. felizmente o carro não estava muito longe e pude, assim, escapar-me, guardando para mais tarde o meu passeio à chuva. o meu domingo estava agora a começar. olhei para o espelho e vi uma pessoa diferente, vi uma pessoa capaz de alterar o seu próprio rumo e destino. teriam sido estes os impulsos que faltavam? a aventura? o medo? o risco? de qualquer forma, e tirando as dores na perna esquerda, cada vez mais lancinantes, instalou-se pela primeira vez, em muitos anos, um rasgado sorriso na minha cara e estava a ser deveras gratificante poder ver isso reflectido no espelho.

capítulo II
o meu nome é jorge oliveira, sou divorciado, tenho um filho, o marco, que vejo aos fins-de-semana de quinze em quinze dias, e sou delegado de informação médica. não que tenha grande apetência para o cargo profissional que ocupo, mas foi o que pude arranjar depois de quase três anos de desemprego. é claro que tinha outras ambições para a minha vida, nunca pensei chegar assim tão derrotado a esta idade, mas a minha vida caiu a pique depois da morte do meu pai, há quatro anos. depois seguiu-se a separação da minha mulher, o desemprego e uma cada vez menor resistência a todo um vasto leque de vícios e companhias obscuras. a perda do meu pai foi muito dolorosa, perdi o meu rochedo, o meu apoio. era sempre com ele que ia ter quando os problemas atacavam. a prestação da casa, os seguros, as avarias do carro... ele arranjava sempre soluções para tudo. habituei-me tanto a que fosse ele a resolver todas as coisas chatas que me apareciam que acabei por me desleixar, por nunca me ter verdadeiramente interessado por elas, pela forma como se resolviam. quando o perdi, senti-me sozinho, desamparado. não estava ainda preparado para o perder, não me tinha ainda ensinado tudo. naquela noite fria de janeiro, quando o telefone tocou às três da manhã, senti imediatamente que tinhas partido. que outra má notícia poderia ser? a minha mulher estava ao meu lado, o meu filho dormia no seu quarto, a mãe já tinha partido há anos... só podias ser tu pai! caminhei para o telefone como um condenado a caminho da execução. o choro compulsivo do meu irmão foi a confirmação final. metade do que tinha sido até aí partiu com ele. infelizmente, a melhor parte.
o meu pai vivia com o joão, em tomar, desde que a nossa mãe morreu. vinha passar apenas um mês connosco. a minha cunhada, a matilde, trabalhava em casa, como ama, e podia dedicar-lhe mais tempo do que nós. eu, na altura, era funcionário público, nas finanças, e a sónia, minha mulher, já era advogada, com escritório próprio. como invejei nos anos seguintes o joão e a matilde, por terem podido estar mais tempo com o meu pai do que eu, ouvir os seus conselhos, ir ao futebol, jogar às cartas. nos meses seguintes à sua morte, a tensão em minha casa já era muito grande. a sónia sentia que eu a culpava por não termos passado mais tempo com o meu pai. o trabalho era tudo para ela, queria construir uma carreira, estabelecer-se como advogada de topo na cidade. quando lhe ventilei a hipótese de o meu pai ficar em nossa casa mais tempo do que o tradicional mês de julho, quando o joão e a matilde iam de férias, a sónia logo disse que era incomportável com o ritmo das nossas vidas, ela sem horário para chegar a casa e eu com horários rígidos e inflexíveis. fez-me ver igualmente que o meu pai não iria ser feliz na cidade, com a confusão do trânsito, o barulho, as multidões. eu, obviamente, concordei, porque a sónia tinha razão. mas depois de ele morrer, culpei-a inconscientemente pelo facto de não ter passado mais tempo com o meu pai. e o casamento começou a ir pelo cano abaixo...
(continua)

2 comentários:

  1. Estás a ver se me consegues outro vício, para além da bica diária e do episódio semanal de Lost?!(Ok, e da tal salada clássica, de vez em quando!)

    Isto promete, sim sr...
    Go on and astonish us, Jorge Oliveira!

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