segunda-feira, fevereiro 03, 2020
desconstruir as redes sociais
gostava de entender a necessidade cada vez mais premente que a maior parte das pessoas têm de aparecer, de chocar, de provocar, de agitar. vêem algo nas redes sociais com que não concordam, vindo seja lá de onde for, e comentam, criticam, denigrem, chamam nomes, atacam, destilam ódio, mesmo sem sequer conhecerem quem está do outro lado, quem escreveu e publicou tal "barbaridade". mesmo sem tentar entender o que foi escrito, como foi escrito e para quem foi escrito. ainda há outra parvoíce ainda maior: quando o texto publicado é muito grande, há sempre uma vontade indómita de se cingirem ao título ou, quando muito, ao primeiro parágrafo. ler cansa muito o cérebro, incomoda, causa sono, é chato, daí o facto desta estirpe de pessoas adorar ler títulos. e onde é que há mais títulos? exactamente, no feed do facebook. há quem considere que fazer scroll down nessa rede social durante várias horas, diariamente, é o equivalente a ler dezenas de jornais, uma centena de livros e milhares de teses de doutoramento. e, lá está, quando surge um daqueles títulos bombásticos, há que intervir, mostrar a indignação, dizer aos quatro ventos que o país é uma merda, as instituições são uma fraude, os governantes são corruptos, o sistema não funciona, fazendo tábua rasa de tudo aquilo que, no fundo, deveria servir de bússola orientadora da sociedade. mas não, para este tipo de pessoas, nunca nada está bem, está sempre tudo mal. ana gomes? "é matá-la, já". rui pinto? "esse filho da puta já deveria estar morto". joacine? "raios partam o raio da gaga que só me enerva". o povo quer é sangue. o correio da manhã dá-lhes isso diariamente, no jornal e na televisão, as audiências comprovam tudo aquilo que o povo ambiciona. quer demissões, escândalos, divórcios, atritos, crimes e sangue, muito sangue. é isso que querem ver no facebook, todos os dias. é isso que querem comentar. é aí que querem despejar as suas frustrações, despejar a raiva acumulada, vociferar contra alguém (às vezes nem se sabe muito bem quem) que poderia ser perfeitamente um colega de trabalho, o patrão, o marido, o vizinho do lado, a esposa, se desse para os insultar sem se saber, de forma incógnita e cobarde. o que é preciso é dizer mal, porque dizer bem, aplaudir, elogiar, cumprimentar, é para meninos e não fica bem. estas pessoas precisam da "carneirada" à sua volta, de consensos, e, portanto, se toda a gente diz mal, eles também vão dizer mal, porque assim sentem-se parte de algo grandioso e de algo popular. nesta situação, o que interessa é aparecer, não chegar atrasado aos temas, estar informado (lá está, com as tais horas diárias no facebook a ler títulos) para quando os assuntos surgirem, normalmente através dessa horda a que se convencionou chamar de "influencers" (mais um nome pomposo para aqueles que nem têm uma profissão), eles estarem devidamente preparados, julgam eles, para intervir. e o povo pede intervenção, a carneirada exige acção, caso contrário, não podes pertencer a esse fantástico clube onde reina o consenso, a expressão máxima do consenso: "tudo está mal, todos estão errados e se fosse eu a mandar... faria exactamente a mesma coisa".